ALÉM DOS NOSSOS LIMITES

ALÉM DOS NOSSOS LIMITES

EXPLICAÇÃO DESNECESSÁRIA, MAS ÚTIL

Desde sua criação, este site foi sempre dedicado às artes e à cultura do Maranhão. No entanto, sempre há a necessidade de falar/escrever sobre obras e autores de outros estados e de outras regiões. Então decidi colocar esta nova página na qual coloco textos que vão além dos espaços maranhenses.

Boa leitura para quem chegou até aqui.






UMA VICTORIA DA LITERATURA BRASILEIRA

 José Neres

            No artigo da semana passada, comentei que há certa dificuldade (ou mesmo desinteresse) na divulgação dos livros e dos autores brasileiros entre as novas gerações de leitores. É realmente lamentável que alguns talentosos escritores continuem praticamente desconhecidos diante de uma multidão de jovens leitores que preferem mergulhar nas águas da literatura estrangeira sem preocupação em pelo menos conhecerem o que se produz na própria terra.

            No entanto, felizmente, há alguns escritores que têm conseguido consolidar seus nomes mesmo diante de tantas adversidades. É o caso do jovem romancista e roteirista Raphael Montes, que vem despontando como um dos bons nomes da ficção nacional.

            Nascido no Rio de Janeiro, em 1990, o escritor vem, desde 2012, publicando livros que mesclam pesquisas, abordagens psicopatológicas, suspense e elementos do que há de melhor da literatura policial. Ele é autor de Suicidas (2012), Dias perfeitos (2014), O Vilarejo (2015), Bom dia, Verônica (2016, em parceria com Illana Casoy), Jantar secreto (2016) e Uma mulher no escuro (2019), além de participar de diversas antologias.

            O autor costuma temperar suas obras com enredos bem elaborados com alternâncias de ritmos, nuances e tonalidades ao longo das narrativas, interesse pelos aspectos comportamentais das personagens, suspense e múltiplas camadas de ações investigativas que buscam surpreender o leitor a cada capítulo.

            Em seu mais recente romance – Uma mulher no escuro (Companhia das Letras, 254 páginas), o jovem escritor leva-nos a acompanhar o dia a dia de Victoria, uma garota que sobreviveu a uma tragédia e passa por tratamento psiquiátrico para tentar levar uma vida menos atribulada.

            Visivelmente antissocial, Victoria sente dificuldade de aproximar-se das pessoas e faz questão de levantar barreiras entre si e as demais personagens que se apresentam paulatinamente na história. Como se trata de um romance policial, as peças essenciais para a resolução do mistério que nubla a vida da protagonista são apresentadas aos poucos... e sempre com o intuito de levar o leitor a tentar desvendar o labiríntico quebra-cabeças que remete a um passado que precisa ser recuperado.

            Aos poucos, personagens como Arroz, Georges, Doutor Max, Sofia, delegado Aquino e Emília vão saindo das sombras e passam a descortinar um passado desconhecido por uns e temido por outros. A cada capítulo, as surpresas se multiplicam e as fissuras sociais e comportamentais ganham novas dimensões. Como ocorrem nos espetáculos de prestidigitação, o leitor deve ficar atento para não cair nos truques de ilusionismos propostos pelo autor.

            Em sua prosa, Raphael Montes utiliza uma linguagem límpida e crua ao mesmo tempo e, embora alguns pontos do suspense tenham seus desfechos previsíveis, é impossível negar o talento do autor na tessitura do enredo e no encaixe das tramas necessárias para a compressão das peripécias que compõem o intrincado cenário narrativo.

            Trata-se de um bom romance policial que prende o leitor e o faz mergulhar no mundo da imaginação, além de possibilitar o contato com inúmeros pontos obscuros do comportamento humano.

            Raphael Montes é um desses talentosos escritores que, a contar pelo ritmo e pela qualidade de suas produções, deixará suas marcas na história de nossa literatura.

 

A BELEZA POÉTICA DE BRUNA LOMBARDI

 José Neres

 

Bruna Lombard

            Muitas pessoas se comprazem em viver colando etiquetas de identificação nas outras. Quase sempre, alimentam-se da certeza de que apenas uma etiqueta é suficiente para definir alguém. Dessa forma, um professor deve ser sempre um professor, um atleta nunca pode ir além do esporte, um engenheiro deve passar a vida mergulhado em seus projetos, uma atriz terá que representar, representar e representar... E assim por diante.

            No entanto, a vida real não é assim. O mundo não veio ordem alfabética, como certa vez disse o poeta Manoel de Barros, e as complexidades da vida não se eximem das inúmeras pequenas facilidades e dificuldades que as compõem. Uma, duas, três, dez ou cem tabuletas, adesivos ou etiquetas nunca serão suficientes para definir ou limitar talentos e habilidades humanas.

            Geralmente, essas pessoas que gostam de colar etiquetas se assustam quando descobrem que cada ser humano pode ser visto como um infinito palimpsesto, com inúmeras camadas que escondem formas, traços, cores e refolhos que, embora invisíveis aos olhos, não deixam de existir e ficam à espera de quem possa escavar e descobrir valores que sempre estiveram ali, mas que por serem ignorados por uma parcela da população, tomam a aparência de novidade.

            É mais ou menos isso o que ocorre quando algumas pessoas descobrem que Bruna Lombardi, conhecida e reconhecida como uma das mais belas e talentosas atrizes brasileiras de todos os tempos, é também uma escritora com diversos livros publicados e que suas lides com as palavras escritas precedem cronologicamente suas performances nos palcos e nas telas.

            Bruna Lombardi é autora de três livro de poemas: “No ritmo dessa festa” (1976), “Gaia” (1980) e “O perigo do dragão” (1984); dois romances: “Filmes proibidos” (1990) e “Meu ódio será tua herança” (2004); e do livro infantil “Apenas bons amigos” (1987), além de livros em outros gêneros.

            Mas quem se acostumou a distribuir etiquetas em uma lógica biunívoca costuma duvidar da competência de quem ousa fugir a esses padrões impostos. Torna-se, então, até certo ponto comum encontrar quem duvide da possibilidade de alguém desenvolver múltiplos talentos e de destacar-se em várias áreas do conhecimento. Surge então uma incômoda pergunta: Bruna Lombardi é uma boa escritora?

            Apenas um sim ou não como resposta seria algo simplório e sem sentido. Não se pode avaliar o talento de alguém apenas por seu nome, por sua beleza física ou por sua condição social. No caso da literatura, é preciso ler e esmiuçar os textos, observar o uso que o escritor faz das palavras, seu poder de sugerir metaforizações e de alterar o eixo das significações.

            O que se percebe ao ler os três títulos de poesia de Bruna Lombardi é que, sem se preocupar com as limitações impostas pelas regularidades métricas e pela busca de rimas esdrúxulas (embora estas apareçam vez ou outra nos poemas, mas quase sempre quando são extremamente necessárias), ela optou desde o princípio por valorizar o ritmo e de imprimir em cada poema suas digitais em forma de imagens poéticas que encantam e desconcertam ao mesmo tempo.

            Utilizando habilmente uma mescla de sensualidade, ousadia, recato e lucidez no uso das palavras, ela constrói uma imagem que aguça os sentidos com relação ao corpo feminino, porém sem vulgarizá-lo, conforme ocorre em:

 

Uma mulher caminha nua pelo quarto

é lenta como a luz daquela estrela

é tão secreta uma mulher que ao vê-la

nua no quarto pouco se sabe dela

(...)

o homem que descobre uma mulher

será sempre o primeiro a ver a aurora (p. 280).

 

            A frequente aposta em temas extraídos do cotidiano aproxima os textos do leitor que busca um livro com o objetivo de encontrar em suas páginas um reflexo da vida viva e verdadeira que nos rodeia e nos espreita a cada esquina. Em tom quase coloquial, a escritora consegue “desenhar” alguns painéis que oscilam entre o lirismo e o social, com a recorrência de elementos verbais que fazem parte do dia a dia das pessoas que transitam por cenários carregados de simplicidade e de vida, como é o caso do poema “Sábado”, transcrito a seguir:

 

Eu te trouxe lá da feira

uma cabaça, uma panela

e uma macaxeira

um apito de saíra

e aquele capim que cheira

 

vim andando pela estrada

que era só sol e poeira

 

trazendo pimenta da quente

esse colar de semente

e saudade da tua esteira (p. 171).

 

            Nas quase quatro centenas de páginas da “Poesia Reunida” de Bruna Lombardi (2017, Editora Sextante) há espaço para temas que vão da crítica social aos limites da sensualidade e do erotismo sem apelos para as futilidades verbais. Os poemas podem ser lidos em qualquer sequência, mas, quando apreciados na ordem de publicação dos livros, deixam perceber um certo apuro vocabular que torna alguns poemas mais vívidos, porém sem desmerecer os demais.

            Conclusão: Bruna Lombardi é extremamente competente em sua tessitura poética e consegue trabalhar questões até certo ponto polêmicos com maestria e com a sabedoria de quem sabe que as palavras podem ter vida própria e que é preciso muito cuidado ao tentar domá-las. Sua poesia é límpida e faz bem aos olhos e aos ouvidos.






 

DALTRO: UM TALENTO EM TELA

 José Neres

Acredito que tudo no mundo tenha uma história. Porém tenho também a certeza de que nem sempre há o interesse em saber o porquê de certas escolhas ou dos acontecimentos. É sempre mais fácil colocar a culpa nos acasos e esquecer os fios e nós que nos trouxeram até onde estamos. Aprendi isso quando, ainda garoto, me deliciava ao ouvir os “causos” contados pelas pessoas mais experientes. Talvez venha daí essa minha mania de iniciar meus textos situando histórica e afetivamente meu tema de estudo.

Minha relação com a obra do artista plástico Daltro (a quem não conheço pessoalmente) e a consequente admiração por sua obra é algo bastante recente. Data de 2017. Naquele ano, pela primeira vez, tive que passar meu aniversário longe de meus familiares. Nunca fui de comemorar datas. Mas, sem dúvida, é muito estranho não estar entre os seus nessas horas de alegria e reflexão. Mas eu não estava sozinho. Duas outras colegas de turma – Mel e Mira – também completavam ano na mesma semana. Eram três dias seguidos de comemoração.

O sempre elegante professor Gilberto Luiz Alves, que além de meu orientador no doutorado, acabou se transformando em um amigo que guardarei para sempre, convidou a turma para um jantar em homenagem aos três aniversariantes. Nem todos puderam ir. Mas foi uma noite muito agradável e de muitos aprendizados na churrascaria Vermelho Grill, com direito a muitos sorrisos e até um bolo.

Depois disso, fomos conhecer o vasto acervo do professor Gilberto Alves, reconhecidamente o maior colecionador de arte em Campo Grande. É nesse ponto que meu caminho cruzou com a arte de Daltro. Entusiasmado, o dono da coleção de quadros explicava aos ouvintes o valor artístico e histórico das obras ali expostas nas paredes. Havia também algumas telas que ainda estavam por serem emolduradas. Vi uma que me chamou a atenção: O Castigo Paterno. Autor: Epamilondas Pedreira Daltro Júnior, um corumbaense nascido em 1965 e que adotou o nome artístico de Daltro.

Passei um bom tempo admirando a tela e, no final da visita. Para surpresa dos aniversariantes presentes, cada um de nós ganhou uma tela. Não há como expressar a alegria de receber um presente desses. Ao voltar para casa, tomei logo as providências de mandar emoldurar aquela obra de arte e hoje ela ocupa um lugar de destaque em minha sala.

Mas quem é Daltro?

Daltro é um dos melhores e mais versáteis artistas de Mato Grosso do Sul. Basta pousar o olhar em uma de suas telas para que se possa perceber que ali está um desenhista/pintor/escultor que leva a sério sua arte e que não se preocupa em copiar técnicas e estilos alheios, imprimindo suas digitais em cada um de seus quadros e de seus desenhos.

É possível perceber que Daltro tem preferência temática por retratar as pessoas simples em ambientes comuns, sem ostentações e rodeados pelos elementos da natureza. Seus traços são fortes e não parecem muito preocupados em compor cenas em hiper-realismo, preferindo fazer com que as sinuosidades das personagens “saltem” da tela diretamente para o olhar do observador em uma espécie de expressionismo/impressionismo no qual as cores e formas se completam sem a necessidade de exagerar nos traços.

Lavadeiras, pescadores, crianças, farristas, camponeses, vaqueiros, violeiros e outras figuras populares são o centro das atenções de Daltro quando a temática de sua tela remete a seres humanos. O tom, às vezes desfocado, mesclado com as cores vivas dão um efeito especial às obras e remetem à sensação de pertencimento à paisagem retratadas e às situações expressas. Mesmo sabendo que a pintura representa uma cena isolada, é possível perceber-se e apropriar-se da movimentação do antes e do depois que emana de cada quadro desse artista.

Dentro de seu projeto artístico, Daltro também se dedica a imortalizar as paisagens de sua cidade em seus quadros. É possível, a partir das pinturas desse artista, fazer um passeio turístico pelos locais que frequentam suas memórias afetivas e percepções.

Ainda bastante jovem, Daltro já pode ser considerado um dos mais expressivos artistas não apenas do Centro-Oeste brasileiro, mas sim de todo o Brasil e, possivelmente, poderá alçar a uma carreira internacional. Talento ele tem para isso.

Quem se interessar pela obra desse artista plástico, pode ter acesso a centenas de trabalhos seus em sua página no Instagram (@daltro65). Ali estão não apenas suas telas, mas também reproduções de esculturas e de desenhos. Assim é possível avaliar, mesmo que superficialmente, um pouco da obra desse artista que merece todos os aplausos.

Tudo no mundo tem uma história. A de Daltro é feita de cores, traços e de muito talento.

 






CORES E FORMAS EM ISAAC DE OLIVEIRA

José Neres

 

 

 

            Quem reside na cidade de Campo Grande ou pelo menos passa algumas horas transitando pela capital sul-mato-grossense, invariavelmente, se deparará com alguma obra do publicitário e artista plástico Isaac de Oliveira. Suas telas, originais ou em reprodução, estão presentes em diversos locais como shoppings, restaurantes, hotéis, repartições públicas, residências, galerias e até mesmo em objetos utilitários ou de decoração.

            O primeiro impacto visual geralmente vem em função do contraste das cores vivas com fundos em tons mais suaves. A seguir, ao prestar a atenção para o conjunto da tela, o observador percebe também um extremo cuidado com a proporção das formas e com o equilíbrio harmonioso entre o foco principal de interesse e os elementos periféricos, que quase nunca estão ali apenas para compor um cenário, mas sim por se integrarem a um todo que se completa em cada mínima parte.

            Com um pouco mais de atenção, é possível notar que a produção pictórica desse talentoso artista não é fruto apenas dos instintos visuais de quem tem como hobby traduzir em linhas, pontos, curvas e cores o que atrai sua atenção na natureza. Também não se trata de alguém que viu nas artes uma oportunidade de estabelecer-se financeiramente. O que se percebe vendo as inúmeras telas de Isaac de Oliveira é que elas são o resultado de pelo menos três variáveis que quando se encontram em uma mesma pessoa costumam dar bons resultados: talento, estudo e perseverança.

            O talento desse artista baiano que há décadas se radicou em Campo Grande é notório. Mesmo quem aparentemente não se interessa por artes plásticas se impressiona com os traços vivos que levam para a tela arvores, flores, animais silvestres e outros motivos com o mínimo possível de distorção, mas sem perseguir a exatidão de uma reprodução mecanicista e sem vida.

            É possível notar que, associado ao talento nato, há também um grande grau de esforço em aprender com os grandes mestres das artes mundiais. Suas releituras dos quadros de pintores mundialmente reconhecidos não se confundem com o plágio e nem mesmo com o pastiche puro e simples. Aparentam ser, em verdade, exercícios para apurar a técnica e compreender como os chamados gênios da arte encontraram soluções para problemas técnicos e/ou teóricos que continuam incomodando os artistas das novas gerações.

            Outra grande qualidade de Isaac de Oliveira, mas que só pode ser percebida a partir de uma comparação diacrônica de seus trabalhos. Assim é possível notar ele sempre procurou resolver algumas limitações técnicas que poderiam atrapalhar seu trabalho. Exemplo disso são os fundos chapados do início de sua carreira que foram substituídos paulatinamente por um tipo de opacidade que desfocava o objeto central da tela até atingir a leveza das cores menos densas que se harmonizam com sinuosidades em busca de uma impressão de movimento, mesmo em motivos que levem à ideia de aparente imobilidade, como é o caso de suas séries centradas em ipês floridos.

            Um detalhe que chama a atenção no conjunto da obra desse artista plástico e sua integração com o meio ambiente. Mesmo sem recorrer a um explícito engajamento em defesa da fauna, da flora e ser humano, percebe-se uma preocupação latente com a preservação do pantanal e do planeta como um todo. Aves, peixes, animais selvagens, plantas e seres humanos fazem parte de um grande painel ecossistêmico. É o tipo de silêncio que se não soa como denúncia, pode ser interpretado como alerta, pois da forma como o homem está tratando a natureza, possivelmente algumas espécies, em um futuro bem próximo, só serão vistas em livros, documentários e em obras de artistas como Isaac de Oliveira.

 

Fonte das imagens: internet