O PODER DA CALCINHA
José Neres
O péssimo humor era sua característica mais marcante.
Seus documentos indicavam que ela estava prestes a completar 42 anos. Porém sua aparência aceitava o acréscimo de pelo menos cinco anos mais.
Chegava de cabeça baixa, não respondia ao boa noite do professor e nem mesmo o dos poucos colegas de classe que ainda tinha paciência para tentar cumprimentá-la. Era possível sentir até um certo alívio da turma nos raros momentos em que ela faltava às aulas noturnas do curso daquela faculdade particular.
Mesmo quando quase toda a turma sorria de algo, ela permanecia séria e compenetrada. Nos trabalhos em equipe, sempre falava por último em uma voz quase inaudível. Era quando ficava mais exposta. Suas roupas demonstravam claramente que ela, a moda e a vaidade não há muito tempo não trilhavam os mesmos caminhos.
Mas, naquela noite, todos se surpreenderam...
Ela chegou e soltou um sonoro boa noite. Sua voz estava tranquila e sua pisada firme era de uma mulher decidida. Os trajes eram os de sempre, mas ali dentro estava uma outra mulher. Um sorriso de felicidade e o brilho nos olhos devolviam-lhe a idade que estava nos documentos e talvez ainda lhe aliviasse do peso de alguns anos.
Não resisti e disse: “Muito bem. Quanta alegria! Divida conosco o motivo de tanta felicidade!
Era ainda bastante cedo. A maioria dos alunos ainda não haviam chegado. Ela acomodou na carteira algumas sacolas que trazia nas mãos, levantou a cabeça, olhou para a todos e respondeu orgulhosa:
– É que eu comprei uma calcinha, professor.
Depois de breves segundos de espanto, a gargalhada foi geral. Ela ria mais que os demais. Depois pediu silêncio e explicou:
– Parece bobagem, mas para mim não é. Comprei uma calcinha.
Todos ficaram em silêncio e aguardaram o que ela ensaiava falar:
– Casei cedo. Não pude estudar no tempo certo. Tive quatro filhos. E sempre fui humilhada, primeiro por meus pais, depois por meu companheiro. Jamais ganhei um centavo na vida. Dependia dele para tudo. Até mesmo para comprar calcinha. Muitas vezes tive que ouvir: “Tu não faz nada e ainda me pede dinheiro para comprar calcinha, que absurdo”. “Pra quê você que calcinha de novo? Usa as velhas mesmo, ninguém vai ficar sabendo”... Era muita humilhação na minha vida. O senhor, entende, professor, uma mulher que tem que se humilhar para comprar uma calcinha não tem mais dignidade, não tem como sorrir, não tem como ser feliz...
Fez uma pausa. A voz embargada contrastava com uma faísca de felicidade que saía de seus olhos.
– Lá em casa foi uma briga quando decidi estudar. Se não recebia dinheiro para calcinha que dirá para cadernos, canetas, lápis, livros, cópias. Tive que roubar material de meus filhos para não passar mais vergonha ainda. Sentar ao lado de cada um de vocês aqui na sala sempre foi para mim um ato libertador. Mas eu tinha que voltar para casa, arrumar tudo e engolir cada humilhação em silêncio. Ele nunca me deixou trabalhar nem mesmo de doméstica ou de babá. Na volta do mercado, tenho que devolver até o último centavo de troco. Nunca passei fome, é verdade, mas comida não é tudo.
Todos na sala estavam paralisados. Duas ou três pessoas havia chegado durante o depoimento e nem mesmo conseguiam sentar-se diante daquela história inusitada.
– Mas, pessoal, vocês lembram que surgiu aquela notícia de estágio remunerado naquela escola lá do centro? Pois é, fui com a cara e a coragem. Enfrentei meu medo, meu nervosismo, minhas dificuldades e um monte de candidatos daqui e de outras faculdades. Fui bem na entrevista e, mês passado, comecei a estagiar. Foi difícil. Tenho convivido com a cara amarrada do marido e com a cara de deboche de meus filhos.
Ela se levantou de onde estava. Veio até a frente da sala e, após respirar bem fundo, disse calmamente:
– Hoje saiu o pagamento do estágio. Antes de vir para cá, passei em uma loja e comprei uma calcinha. A primeira em toda a minha vida que comprei com meu dinheiro. Vocês nem imaginam como estou me sentindo hoje. Sou outra mulher. Sou outra pessoa. Professor, na hora da chamada, diga meu nome bem devagar. Estou descobrindo quem realmente sou.
Todos os rostos da sala estavam banhados em lágrimas. Aplausos. Abraços...
Era hora de iniciar a aula. No momento da chamada, todos os olhares se dirigiram para aquela nova e poderosa aluna. No silêncio da sala, ela se levantou, correu os olhos por cada fileira e, de seus lábios, ecoaram um potente grito de liberdade:
– Agora, sim, Presente!
O Professor-Mendigo
José Neres
UMA TRILHA SONORA DO AMOR
José Neres
Não lembro se isso aconteceu sábado (todo sábado era assim), em um dia de domingo. Mas sei que foi em um dia em que a terra parou.
Ele estava lá. Era a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Tudo estava igual e ele estava triste. “Tudo está no seu lugar, graças a Deus” – pensou. Um carro vermelho passou a cento e vinte por hora, e uma brasília amarela estacionou.
Ela parece que estava à toa na vida, chegou em frente ao portão. Não entrou. Aquela rua não é mais a mesma rua... A placa indicava: “Vende-se esta casa ao primeiro que chegar”.
Ele não a conhecia. Mas não pôde deixar de admirá-la. Seu pensamento começou a voar, voar, subir, subir: “Que coisa mais linda, mais cheia de graça”. Tinha que falar com ela.
- Olá, como vai?
- Vou indo. E você? Tudo bem?
- Dona, desculpe, mas, você é linda, mais que demais. Você é meiga demais. Por você sou capaz de roubar até a lua.
Ela sorriu
- Sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco. Mas não sou vagabundo, não sou delinquente, sou um cara carente. Sou uma espécie de gavião vadio sob o sol.
- Confesso que ainda sou uma garotinha. Você é bonito. É um negão de tirar o chapéu, mas não vou dar mole, senão... E você deve ter mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores... Ainda lembra sua primeira namorada? Já que a primeira namorada é difícil de esquecer...
- A primeira foi Iracema, mas ela morreu atropelada, dela não sobrou nem mesmo um retrato.
- E as outras?
- Teve a Jeniffer, que eu encontrei ela no Tinder, mas não durou muito. De Conceição eu me lembro muito bem. A Amélia, que se considerava uma mulher de verdade. A Madalena, que acreditava que o mar é uma gota comparado aos prantos seus. Lembro da Jéssica, que se achava a coisa mais linda que Deus soube fazer. A Eva, que desapareceu, até parece que fugiu numa última astronave. Uma cigana muito bonita de cabelos muito negros chamada Sandra Rosa Madalena. A Ana Júlia, que hoje trabalha como secretária na beira do cais. E a Leydiane, que jurou que ia me amar de janeiro a janeiro, até o mundo acabar, mas me traiu e foi viver em um cabaré. A todas amei como se não houvesse amanhã. Mas descobri que o pra sempre sempre acaba. Eu não sou cachorro não. Acho que sou inútil, mas espero o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas do planeta.
- Hummm!!! Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor. Eu gosto de ser mulher.
- Qual seu nome?
- Beth
- E você? Pode falar de seus amores”
- Não foram tantos assim. Teve o meu amigo Pedro, que acabou provando que tudo acaba como começou. O inseguro José, que vivia perguntando “e agora?”. Com ele foi rápido, logo a festa acabou, a luz apagou... O Manuel foi pro céu, ele era um moreno alto, bonito e sensual... Gostava muito dele. Acabei procurando auxílio profissional. Aí um analista amigo meu disse que desse jeito não vou ser feliz direito. Deixou claro que tudo passa, tudo passará. Solitária, pensei até em rifar meu coração, fazer um leilão, vendê-lo a quem der mais. Acho que sou uma mulher de fases.
Ela começou a chorar. Ele tentou abraçá-la. Mas foi surpreendido com uma frase:
- Tire sua mão de mim, eu não pertenço a você.
- Calma, Beth, Calma.
- Não vou chorar lágrimas de crocodilo. Preciso de uma verdade chinesa
- Linda, só você me fascina, te desejo, muito além do prazer.
- Quero viver seguindo a receita da vida normal... Viver e não ter vergonha de ser feliz. Quero ir para onde Deus possa me ouvir...
- Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor. Beija-me muito, como se fosse essa noite a última vez. Fica comigo esta noite e não te arrependerás.
Ela parou, olhou para ele e disse:
- Uhhhh, eu quero você como eu quero... Você me deixa louca...
(...)
Eu juro por mim mesmo, por Deus, por meu pai, que queria saber como acabou aquela história de amor. Mas, de repente, o telefone toca, avisando que é chegada a hora de ir. Tenho pressa. Vou de táxi.
Fui embora, caminhando e cantando e seguindo a canção. Torço por aquele rapaz que parece que também amava os Beatles e os Rolling Stones. Ele era um vagabundo como eu, que também merece ser feliz.
Máscaras
Com a determinação de uso de máscaras nos ambientes públicos, começam a surgir os idiotas que se acham espertos.
Como quase todos os estabelecimentos comerciais destacaram funcionários para cobrar higienização das mãos e o uso das máscaras, inclusive barrando quem não se proponha a cumprir as regras, muitas pessoas sem o menor respeito pelos próximos colocam a máscara para entrar e logo depois decidem proteger o queixo, o pescoço, a testa ou a orelha ao longo dos corredores dos comércios, exibindo um risinho cínico de quem se sente poderoso/a por descumprir uma regra que beneficia a todos.
É nessas horas que a verdadeira máscara cai e a pessoa expõe sua imensa pequenez diante de um problema que afeta a todos.
Às vezes, rebeldia é um ato de coragem. Nesses casos é uma prova de burrice
OBITUÁRIO VIRTUAL
José Neres
Nos últimos dias, cada vez que acesso as redes sociais me deparo com a imagem de um colega, amigo ou conhecido que acaba de se despedir de nosso mundo terreno rumo a uma possível eternidade.
A Morte sempre foi perversa e irônica. Às vezes mandava recados, outros momentos chegava de surpresa e levava quem lhe interessava. Mas pelo menos, em tempos comuns, ela nos deixava acompanhar nossos entes queridos até a última viagem, deixava que os corpos fossem velados e que as lágrimas dos que ficaram confortassem as famílias dos mortos.
Porém em tempos de crise como esta até isso não é mais permitido. Os caixões são levados por poucos membros da família, que, rapidamente, voltam para seus lares (quando têm sorte de terem um lar)...e choram a perda com suas lágrimas e soluços abafados pelo som da atualização do número de mortos no jornal que passa na TV, ou pela barulhenta live de um dos artistas famosos que tentam dar um pouco de conforto para seus fãs.
E os mortos perderam até o direito a um nome.
Nossos mortos viraram números em uma estatística. Só têm nome para as pessoas mais próximas. Isolados fisicamente e distantes até mesmo em afetos e pensamentos, não sabemos mais se aquela pessoa que há muito não atualiza suas redes sociais já não o fazem por falta de tempo, por falta de acesso à internet ou... por falta de vida...
Quando este momento for passado, muitos irão querer abraçar e serem abraçados... Porém alguns não mais serão encontrados pelas ruas, coletivos, escolas, faculdades, shoppings, etc. Tais pessoas não receberão os abraços dos sobreviventes, pois serão apenas uma imagem e um sorriso eternizados na foto de um perfil virtual.
MEMÓRIAS DE UM CASARÃO ABANDONADO
José Neres
Mais uma vez chega o período chuvoso à nossa Cidade. Com ele sempre volta o meu antigo temor de que cada chuva seja a última minha. Tal qual um leproso, sinto minhas partes se soltando. Sinto que cedo ou tarde darei meu último suspiro. Meu último, sonoro e dolorido suspiro. Igual ao dos meus irmãos que já se foram.
Tenho ainda na memória meus dias de glória. Tempos longevos e irrecuperáveis. Todos acreditavam que eu seria eterno. As paredes largas, recheadas de pedras, cal e óleo de baleia, eram a garantia de uma vida longa e sem problemas. Ninguém daquele tempo acreditaria que um dia eu chegaria a este estado decrépito, em que até mesmo um vento mais forte pode ser uma ameaça mortal.
Meus primeiros donos me ergueram como símbolo de riqueza e ostentação. Quantos barões e abastados senhores de escravos não passaram pelos meus portais! Quantas conspirações políticas não foram articuladas em minhas amplas salas! Quantas negras não foram desvirginadas à força em meus escuros corredores na calada da noite! Quantas senhoras brancas não receberam seus amantes – brancos, negros ou mulatos – em meus inúmeros aposentos de luxo! Sobre tudo isso guardo um silêncio sem fim. Sou detentor de segredos que dariam fama e dinheiro a qualquer pesquisador interessado nas picuinhas de nossa cidade. Sou uma testemunha muda da História dessa gente que me destrói aos poucos em sua eterna indiferença sobre meu estado de conservação.
Um dia, as manchetes dos jornais gritados nas ruas me trouxeram um alento: a Cidade como um todo acabava de virar Patrimônio da Humanidade. Céus! Patrimônio da Humanidade! Isso era a minha salvação. Seria restaurado. Minhas paredes gretadas finalmente seriam reconstituídas. Meus azulejos não seriam mais roubados, não mais serviriam como souvenir para turistas e transeuntes inescrupulosos que me feriam com seus canivetes suíços. Pedaços de minha vida não seriam mais cobiçados por museus da Europa, ávidos de enriquecimento de seus acervos à custa do desonesto furor dos inúmeros caçadores de raridades.
Mas não passou de uma ilusão. De uma triste ilusão. Vi, consternado, alguns de meus irmãos mais bem localizados sendo restaurados. Vi ruas, becos, igrejas e calçadas sendo recuperadas... E eu sendo esquecido!... O tempo áureo voltava para uns, e a certeza da total inutilidade era evidenciada para outros. E eu estava entre os outros... Acompanhei velhos companheiros recuperarem o viço da juventude e serem reinaugurados com festas, com bandas de música, com discursos tão vazios quanto verborrágicos. E eu me senti cada vez mais solitário. Os flashes das máquinas e a luz das filmadoras não mais refletiam em minhas carcomidas paredes. A cidade ficou cega para mim.
Vários espaços vazios começaram a aparecer nas tomadas aéreas. Eram meus irmãos abandonados que sucumbiam sob o peso dos temporais. Os tratores vinham, limpavam o terreno e poucos dias depois a Cidade era presenteada com um novo estacionamento rotativo. É... O bem-estar dos automóveis é muito mais importante que a história de um povo... Fazer o quê? É o famoso preço do progresso.
Nuvens escuras se aproximam. Sinto já as primeiras gotas batendo contra o que restou de minhas telhas. Parece que uma tempestade se aproxima. Pelo rádio de um passante, ouvi que o temporal hoje será forte. Sinto que meus dias chegam ao fim. Talvez amanhã uma foto de meus escombros ilustre uma página de jornal. Semana que vem os motoristas terão mais um lugar para seus carros. Começou a chuva...
Meu pai era um homem forte, alegre e teimoso, dono de uma memória prodigiosa e de uma simplicidade desconcertante. Como não tive a honra de viver tanto tempo a seu lado, guardo na memória alguns bons momentos e algumas de suas frases.
Conheço poucas pessoas da minha família e até mesmo minha história é meio turva e nublada para mim. Meu pai era então uma espécie de memória externa a quem sempre recorria quando queria saber alguma coisa de meu passado e do passado dos meus familiares. Neste momento, cerca de uma década depois de sua partida para a eternidade, não pude deixar de lembrar dele quando abri o computador e li a notícia da morte de João Chiador.
Foi meu pai que me surpreendeu certa vez ao dizer que duas das maiores personalidades de nossa cultura faziam parte de nossa família: Dona Teté e João Chiador, Não conheci pessoalmente nenhum dos dois, mas sempre acompanhei seus trabalhos com admiração de sobrinho distante que não teve a honra de tomar a bênção para essas duas figuras gigantes de nossa cultura.
Meu pai contava sorrindo diversas histórias da juventude deles. Eu ouvia encantado. Nunca me interessei em saber ser era verdade ou uma história de pescador. O importante era poder saber um pouco da trajetória desses mitos da cultura popular.
Meu padrinho, que foi meu segundo pai na terra, me ensinou desde cedo a conhecer e a respeitar o talento da gente de nossa terra. Com ele conheci nomes como Alcione, João do Vale, Cláudio Fontana, Nicéas Drumont, Coxinho, Eli Carlos e João Chiador. Descobri cedo que de nossa terra brotaram tantos valores que eram respeitados em diversos lugares do mundo.
Hoje a voz de Chiador de calou para sempre, ou melhor, deixou de produzir sons para ecoar seu talento pelo infinito. Eu, respeitosamente, silencio e mentalmente faço o que nunca pude e nem mais poderei fazer: peço a bênção e esse tio e a essa tia que provavelmente nunca souberam que eu existia, mas que sempre tiveram em mim um admirador.
Fiquem em paz meu pai, meu padrinho, Teté e Chiador. E meu muito obrigado por tudo o que vocês me ensinaram, me presença ou na distância!
ATENDIMENTO NOSSO DE CADA DIA
José Neres
Fonte da imagem: Internet
Interessante como algumas pessoas lutam tanto por um emprego e logo depois demonstram péssima vontade de trabalhar e de exercer suas funções com o mínimo de qualidade. Basta passar em um posto de gasolina, um supermercado, um consultório ou qualquer outro empreendimento para sentir no ar a má vontade dos funcionários.
Vejamos alguns exemplos para ilustrar esse atendimento nem sempre amistoso que está se tornando uma das marcas da nossa Ilha.
Um dia desses, véspera de um feriado, uma senhora, em um conhecido supermercado, perguntou para um funcionário que passava: "Meu filho, amanhã aqui vai funcionar?" O rapaz soltou um sorriso de deboche e gritou bem alto: "Nunnncaaaaaaaa!!! Deus me livre! Quero que isso aqui feche para sempre..." E seguiu seu caminho.
Nessa mesma rede de supermercado, uma cliente reclamou pelo fato de que, em uma das filas do chamado caixa-rápido (que geralmente é o mais lento), em cuja placa estava escrito que ali só deveriam ser atendidas compras com até dez unidades, um cliente passou todo um carrinho com uma compra enorme, tomando o tempo de atendimento de cerca de uma dúzia de clientes. Diante da reclamação, a atendente, virou o rosto para o lado, fingiu que não ouviu e começou a cantarolar. Ao ser novamente interpelada, sentiu-se ofendida e novamente fingiu que nada acontecia. Procurada a gerência, o responsável pelo setor disse: “Esse pessoal é assim mesmo, trabalha sem vontade...”
Em um posto de combustível, o cliente chegou e disse: "cinquenta reais de gasolina". A atendente chegou perto do condutor e perguntou: "Dinheiro ou cartão?". Ao receber a resposta de que o pagamento seria em dinheiro, ela estendeu uma das mãos, bateu umas três vezes na palma com a outra mão e, cinicamente, disse: "Deixa eu ver o dinheiro primeiro". Diante da indignação do cliente com a forma de tratamento e com o pedido para chamar o gerente, ela recuou e decidiu abastecer o carro e só depois receber o pagamento.
Em um hospital, a atendente está ao celular aparentemente conversando com o namorado. O paciente se aproxima do balcão, ela, sem deixar de conversar animadamente, estende uma ficha, aponta para as cadeiras e faz sinal para a paciente esperar. Continua conversando... conversando... conversando... e a cliente esperando, esperando, esperando... Quando a paciente vai perguntar se ainda demorará muito, pois está sentindo muitas dores, a mocinha comunica ao interlocutor no outro lada da linha que terá de desligar pois tem alguém atrapalhando a conversa... Só então depois de quase vinte minutos, decide pedir o cartão do plano de saúde e iniciar o preenchimento da ficha, sempre com a cara fechada e olhando para o celular para ver se chegava alguma mensagem.
Na padaria, uma fila enorme e apenas duas atendentes se desdobram para atender aos pedidos com um sorriso e a agilidade necessária para diminuir o tempo de espera dos clientes. Na hora do pagamento, o caixa, aparentemente também proprietário do estabelecimento, sem nem mesmo olhar para as pessoas, de cabeça baixa, pega o dinheiro, faz as contas e literalmente joga o troco sobre o balcão de forma ruidosa, como se fizesse um grande favor em atender as pessoas que ali estavam. A cena se repete dezenas de vezes...
Esses são apenas alguns casos, cada leitor deve conhecer dezenas de outros. Interessante que em todos eles há sempre a presença de um chefe nas proximidades, que olha tudo como se tratar mal aos clientes fosse uma das especialidades da casa. E certamente é.
E nem irei falar do atendimento pelo telefone. Isso fica para outra oportunidade!!!
A LUZ DO CELULAR E AS TREVAS DA EDUCAÇÃO
José Neres
Algumas pessoas acreditam que não existe vida além das múltiplas telas oferecidas pela tecnologia. A mobilidade dos celulares faz com que eles se tornem parte integrante do corpo humano. Há casos em que é mais fácil ver uma pessoa sem roupa do que sem celular... E o aparelho invadiu todos os lugares públicos que antes exigiam um pouco de silêncio e de respeito: escolas, universidades, cinemas, velórios, igrejas, etc.
Essa reflexão é apenas para lembrar uma cena que vi recentemente. A igreja estava a menos de meia lotação. Praticamente vazia, se se levar em conta a importância do falecido. Tudo estava aparentemente normal: familiares e autoridades nas primeiras filas, os mais tímidos e discretos no fundo do templo, algumas pessoas com o olhar marejado de sofrimento, outras encantadas com a beleza do ambiente... O padre, devidamente paramentado, começou sua prédica sobre a vida e a morte, intercalando o discurso com o som de belas canções religiosas na voz de duas excelentes cantoras. Durante os ritos, algumas pessoas mal balbuciavam as palavras, outras, no entanto, aparentemente mais familiarizadas com os cânticos e com a cerimônia como um todo, disputavam a atenção a partir de diversas inflexões, nem sempre afinadas, de vozes...
Quase no meio do templo, indiferente a tudo e a todos, uma bela mulher não se separava de seu celular e, avidamente, percorria as diversas redes sociais. Conversava silenciosamente com os amigos virtuais, digitando agilmente em seu teclado as informações que vinham a sua cabeça. Cada vez que o aparelho alertava para a chegada de uma nova mensagem, seus olhos brilhavam e seus lábios sorriam de pura satisfação. Nos raros momentos em que os amigos distantes não se comunicavam com ela, levantava a cabeça, corria os olhos pelos presentes, dava migalhas de atenção às duas crianças que a acompanhavam e voltava a manusear o aparelhinho, enviando mensagens na esperança de que alguém respondesse.
Uma hora e vinte de cerimônia se passaram angustiantes para quem fora ali apenas como obrigação; velozmente para quem queria aproveitar um pouco mais daqueles momentos de paz. Contudo, para a moça do celular, era indiferente se todo o ritual durasse uma ou dez horas. Ela não estava ali, ela estava dentro de seu moderno aparelho, ambos –ela e o celular - protegidos por uma capa e por uma película. A insistente luzinha do celular iluminava o rosto da jovem e a jogava cada vez mais nas trevas da ignorância. Não apenas da ignorância concebida como falta de educação, mas sim daquela em que nós tantas vezes nos jogamos, quando ignoramos as dores alheias e nos escondemos em nosso mundinho particular, onde a luz do bom senso parece não alcançar.
Fim de cerimônia. O sacerdote faz suas considerações finais. A família do ilustre morto se pronuncia. Os presentes cumprimentam a viúva e os demais familiares. A bela moça do celular se dirige para a porta de saída acompanhada das duas crianças. Para no meio do corredor, ergue o aparelho e, alegremente, começa a digitar uma mensagem. Talvez esteja mandando as condolências para os parentes do falecido. Tudo fica mais fácil pelo celular. Talvez para ela realmente não existe vida nem morte, só um celular conectado à internet.
Clique aqui para ler mais um artigo nosso sobre esse mesmo assunto
QUANDO AS LEMBRANÇAS PASSAM DE TÁXI
José Neres
Estava eu à porta do Teatro Artur Azevedo quando, lentamente, passou um táxi. Até aí nada além do normal. O taxista passava com o olhar atento em busca de algum possível passageiro. Vendo uma pequena aglomeração (para teatro raramente, hoje, pode-se usar a expressão grande aglomeração!), o motorista diminuiu a marcha e, de dentro de sue carro ecoou a melodiosa voz de Nicéas Drumont cantando Gavião Vadio.
Pouco à frente, o amigo Julio Cesar da Hora deu uma pausa na conversa e ficou ouvindo a música. Rente à porta de entrada Gilson César, outro dos merecidamente homenageados da noite, começou a cantarolar: "sou um gavião vadio sob o sol...". Alguns dos presentes lembraram do grande compositor maranhense precocemente falecido. Outros ficaram indagando sobre que música era aquela..Lindalva Barros , disse: "Escuta, é a música que estávamos ouvindo no carro". Hoje, para completar, saiu no jornal O Estado do Maranhão meu pequenino artigo sobre esse gênio da música, uma sigela homenagem aos amigos Inaldo Lisboa (que muito estuda o compositor) e Alice Moraes (que um belo dia me presentou com um vinil de Niceas Drumont).
Lembro-me, que, longe da minha terra, foi com as músicas e com as vozes de Nicéas Drumont, Claudio Fontana, Alcione, Ely Carlos, Rogéryo Du Maranhão, Coxinho e Ubiratan Sousa que meu padrinho, de quem herdei a paixão pelas artes, me mostrou as belezas de meu povo... Ele me chamava para a ouvir as música e dizia: "Meu filho, esse é o som de nossa terra".
Quando voltei para minha casa (quase adulto) fiquei espantado ao perceber que (excetuando Alcione), os demais mestres que me faziam sentir orgulhoso de ser maranhense,mesmo sem conhecer fisicamente um palmo do meu solo natal, eram quase totalmente desconhecidos por aqui. Uma pena! Mas, pelo menos para mim, ali estava o alicerce de minha identidade maranhense.
Nunca tive talento para a música, mas aprendi a parar e apreciar quem entende do assunto. E assim que enviei o texto para o jornal, passei por algumas de nossas cada vez mais raras casas especializadas em música maranhense. Em todas elas perguntei pela obra de Nicéas Drumond. A resposta dos atendentes foi sempre a mesma: "Não sei quem é. Não temos nada dele, mas aqui tem muita coisa boa do Maranhão".
O Táxi passou. Não pegou um passageiro. Mas, ao sumir na esquina, deixou uma bagagem de boas recordações na cabeça de muita gente