FÓRMULAS PARA O FRACASSO ESCOLAR
José Neres
Correm por aí alguns boatos insinuando que nossos índices educacionais estão melhorando e que nossos estudantes estão se saindo bem em diversas avaliações institucionais. Realmente são boas notícias, embora alguns incrédulos teimem em dizer que não é bem assim... De qualquer maneira, é sempre importante fazer algo para que todos possam atingir seus objetivos. Dessa forma, elaboramos um breve esboço com algumas dicas (todas elas devidamente testadas por diversos estudantes ao longo dos tempos) para que o aluno que tenha o fracasso como meta de vida não se sinta excluído e que também possa comemorar a realização de seu sonho.
A seguir temos algumas dessas fórmulas – que não são mágicas, e que exigem um algum esforço por parte do próprio estudante, das famílias, das instituições escolares e das administrações públicas – para que os objetivos do fracasso possam ser atingidos a contento.
SEMPRE SORRIA PARA A TELA DE SEU CELULAR. Como hoje os diversos aparelhos de telefonia móvel se tornaram amigos inseparáveis de quase todo mundo, é muito justo que tais objetos sejam personificados e recebam doses extras de carinho e de atenção. Então, durante as aulas, é sempre importante ficar atento às mensagens, aos áudios, aos links e aos vídeos que chegam. Eles são muito importantes para a realização de seus objetivos. Como o celular acompanha você a todos os lugares, até mesmo na intimidade dos banheiros, é justo que ele também esteja em sala de aula e que você se desligue do mundo para derramar aquele olhar bestificado e soltar aquele sorriso bem maroto toda vez que chegar um aviso de mensagem enquanto os professores se esforçam para tentar explicar algum assunto. O local ideal para descansar seu aparelho é dentro de sua mochila, onde possa ser consultado sem o olhar inquiridor de quem estiver ministrando a aula. Mas você pode optar por colocá-lo entre as pernas, inclusive nos dias de prova, ou no bolso. O importante é que ele esteja sempre próximo a seus olhos... Ah, e não se esqueça do fone de ouvido. Ele é muito importante para que você relaxe ao som de suas músicas preferidas e se livre de vez da voz rouca, cansada e cansativa de seus professores.
NÃO IGNORE SEU SONO. A noite é sempre uma maravilha: são inúmeras séries que devem ser vistas, vários filmes interessantes, infinitas conversas nos aplicativos e nas redes sociais, muitos vídeos e fotos interessantes que chegam... Mas, infelizmente (ou não!), chegará o momento em que o corpo irá cobrar seu déficit de sono. É necessário recuperar as energias. Então, aproveitando que muitas escolas hoje são climatizadas e bastante confortáveis, você pode dormir na hora das aulas e se preparar para uma noite insone. Se alguém reclamar, não pense duas vezes: diga que a aula é chata, que o professor não sabe explicar direito ou que você passou a noite em claro porque tinha algo muito importante para resolver. Geralmente essas desculpas são bem aceitas e não lhe trarão problemas. Para você melhorar suas probabilidades de fracasso, é deveras importante que garanta seu lugar próximo a uma parede, assim você pode se encostar, dormir tranquilamente e fingir que está atento a tudo. O único problema é que alguns professores falam alto e podem importunar seu sono. Novamente ter um fone de ouvido é primordial. Há alguns que passam despercebidos e, caso você tenha cabelos longos, estará tudo resolvido.
AUSENTE-SE SEMPRE QUE POSSÍVEL. Há muitas coisas mais interessantes que uma aula: um mosquito que voa, uma conversa vinda do corredor, a sirene avisando que é hora do lanche, uma reunião agendada com a coordenação ou com a diretoria etc. Então, para você atingir sua meta de fracasso escolar, você deve ser estratégico e todas as vezes que surgir uma oportunidade para não assistir a uma aula (ou pelo menos parte dela), aproveite. Uma boa desculpa é pedir para ir ao banheiro. Eis um ótimo expediente a ser utilizado. E se o professor ou professora resolver negar seu sagrado direito de sair? Não tenha dúvida. Alegue que está muito apertado ou que irá urinar-se ali mesmo. Se precisar, faça um escândalo, mas saia da sala. Ao sair, não se esqueça de ir sempre pelo caminho mais longo e, ao voltar, aproveite alguns minutos para continuar espiritualmente ausente. Assim você dará mais um importante passo rumo ao seu projeto de fracassar nos estudos.
ATIVE O BOTÃO “TÔ NEM AÍ”. Há professores que exigem atenção dos alunos. Essas criaturas geralmente falam alto, gesticulam muito e podem ser um sério obstáculo para a execução de seu projeto de fracassar nos estudos. Em casos assim, é importante que você aplique a milenar técnica de parecer atento às aulas estando totalmente desligado do que acontece ao seu redor. Fazer uma ou outra pergunta aleatória (geralmente pinçada da frase mais recente do professor), manter os olhos fixos no quadro, fingir que anota tudo são algumas técnicas que podem salvar você de alguns momentos constrangedores. Mas nunca se entusiasme com algum assunto ministrado. Há professores que têm o dom de fazer você interessar por alguns temas. Se isso acontecer, não compareça às próximas aulas ou, se possível, consiga um atestado médico ou force uma suspensão. Isso é bem melhor que pôr em jogo seu tão merecido fracasso.
INVISTA EM SEU FRACASSO. Jamais acredite naquelas pessoas que alardeiam a falsa ideia de que fracassar é algo fácil. Não. Não é! Várias vezes você irá encontrar alguém tentando tirar você do foco de seu objetivo. Então é preciso fazer alguns investimentos, inclusive pecuniário. Se possível, faça uma assinatura em um desses sites ou aplicativos que entregam trabalhos feitos e que permitam que você acesse uma gama de questões resolvidas. A função ctrl C + ctrl V irá garantir que você tenha mais tempo disponível para projetar com mais atenção um futuro de fracassos duradouro. Caso não queira assinar algum desses sites, é muito importante criar network com algum colega que se prontifique, mediante pagamento, a fazer seus trabalhos ou mesmo passar-lhe as respostas das provas. Em alguns casos, jogar seu charme para uma pessoa que não lhe agrade esteticamente, mas que esteja disposta a ser enganada com juras de amor ou breves convites para sair em troca de um gabarito pode resolver esse problema, mas de qualquer forma é um investimento.
JUNTE-SE A SEUS PARES. É relativamente fácil localizar aqueles alunos que comungam da mesma ideia que as suas. Junte-se a eles. O fracasso escolar fica mais fácil quando estamos acompanhados de pessoas empenhadas no mesmo objetivo. Nada de ficar perto daquele nerdola que vive com a cara enfurnada em um livro e em suas anotações! Ele pode ser uma péssima influência. Fuja também daqueles famigerados grupos de estudo e daqueles horríveis clubes de leitura. Vai que você seja corrompido! Será seu fim! Mas se o assunto for baixaria, fofoca, farras, pegadinhas ou as famosas ficadas, esteja sempre por perto e participe ativamente das conversas. Elas ajudarão você a conseguir o que deseja.
Esteja certo de que as supracitadas fórmulas de fracasso são apenas alguns exemplos. Há muitas outras que podem ser aplicadas com a mesma eficiência. Lembre-se sempre de que, ao contrário da busca pelo sucesso, que depende de uma enorme confluência de fatores, basta você seguir uma, duas ou três dessas dicas que você estará bem mais perto do fracasso escolar. Mas não perca o foco!
Detalhe mais que importante: essas fórmulas já foram amplamente testadas e podem ser empregadas em qualquer nível de ensino, desde o ensino fundamental até a pós-graduação. Não tem erro, ou melhor, só tem erro!
SOBRE AMOR E ANEXINS
José Neres
Escrita em 1872, pelo teatrólogo maranhense Artur Azevedo, a peça Amor por Anexins é uma das obras mais conhecidas e representadas nos palcos brasileiros. Então, quando aparece a notícia de que esse texto será novamente levado à cena, surge logo uma dúvida na cabeça de algumas pessoas: “Será que essa comédia de costumes do século XIX ainda pode divertir o público contemporâneo?”
A resposta tem sido dada nos últimos meses, com a nova montagem dirigida por Elias Andreato, com direção musical de Jonatan Harold e protagonizada por Cláudio Lins (no papel do histriônico Isaías) e Mariana Gallindo (interpretando a bela e jovem Inês). O público maranhense teve a oportunidade de conferir o espetáculo que esteve em cartaz no Teatro Napoleão Ewerton e, em pouco mais de uma hora, pôde presenciar a junção perfeita e bem humorada entre texto teatral, música e dança.
Com marcações precisas e domínio das técnicas vocais e corporais, os dois atores levaram para o público uma um repertório musical de primeira linha, com uma mescla de canções antigas e atuais, mas que convergiam para a temática central da peça e para o desenrolar das cenas. No palco, os músicos delineiam uma trilha sonora que acompanha os trejeitos e a personalidade das personagens, com algumas intervenções e interações que tornam o processo ainda mais dinâmico e criativo.
Mariana Gallindo imprime em sua personagem toques interpretativos que levam a plateia a um tipo de riso que não interfere na compreensão da trama. O mesmo ocorre com o ator Cláudio Lins, que também aproveita seus dotes musicais e boa presença de palco para compor um Isaías bastante malicioso e cheio de picardias. O casal de atores demonstra bastante sintonia e fazem com que uma situação que é teatralmente forçada ganhe contornos de naturalidade estética bastante verossímil.
O cenário minimalista remetendo a uma mistura de vintage com clássico e Pop Art ficou perfeitamente adequado à proposta do espetáculo e de alguma forma imprimiu uma dinâmica de alegria e de saudosismo ao mesmo tempo. O moderno e o tradicional se encontrando em um mesmo local, em sintonia com os adágios de Elias e os devaneios de Inês, entre a opulência e a necessidade.
Os dois atores ficam tão à vontade no palco que até mesmo os breves momentos de desconcentração passaram quase despercebidos para a maioria das pessoas da plateia. De modo geral, foi uma apresentação brilhante de um texto brilhante, com atuações espetaculares. A breve interação com o público nos momentos finais deu um toque de humanização a uma peça que, apesar de antiga, nestes tempos ditos modernos, ainda há espaço para arte, teatro, anexins, talento e bons momentos.
Como quem espera sempre alcança, valeu a pena esperar pelo espetáculo. Todos os aplausos foram merecidos.
ESTRELAS DE UMA INFINITA CONSTELAÇÃO PARTE II
José Neres
Há algumas semanas, neste mesmo espaço, comentei, de modo bastante sintético, o nome, a obra e o estilo de algumas escritoras maranhenses contemporâneas que têm produzido obras de excelente nível, mas que nem sempre são lembradas, lidas e estudadas. A lista é sempre vasta e, possivelmente, inesgotável. Contudo, acrescentarei alguns nomes à relação anterior, porém com a certeza de que cairei no inevitável abismo das omissões e dos olvidos.
Nascida na cidade de Arari, a jovem escritora Samara Laís Silva adotou o nome literário de SAMARA VOLPONY e já publicou dois livros de autoria individual – Contramaré (2017) e Lua de Memória (2021) – e tem participado de antologias e coletâneas. A poesia de Samara Volpony reflete não apenas suas leituras, mas também enfatiza uma intrínseca relação entre as diversas perspectivas vividas pelo ser humano. Ela aproveita detalhes aparentemente insignificantes do dia a dia e, a partir de observações pertinentes, traça um percurso poético bastante pessoal e eivado de referências que podem ser compartilhadas com o leitor sem perder as singularidades da autora. Não é à toa que ela constantemente investe em verbos e pronomes em primeira pessoa. Trata-se de um toque pessoal na busca de representar o que sai de si, mas que não é somente seu... é humano, essencialmente humano.
Confissão (Samara Volpony)
aos domingos
dói-me
o inútil pecado
confesso
concordo
calo
ficamos assim. (Contramaré, pág. 40)
Outra escritora que vem se destacando tanto nos terrenos da crítica quanto na produção de textos poéticos é GABRIELA LAGES VELOSO. Coautora (com a professora Jeanne Ferreira) do ensaio “Através dos espelhos de Guimarães Rosa e Jostein Gaarder” (editora Diálogos), ganhadora de diversos prêmios literários e com participação em diversas obras coletivas, ela demonstra um bom grau de conhecimento da técnica de tecer versos associado à capacidade de traduzir imagens mentais em forma de palavras. Em versos geralmente sincopados que obedecem ao ritmo impresso pelo tema do poema, essa escritora não se limita a alinhar palavras em uma folha de papel ou na tela de um aparelho eletrônico, ela procura impregnar seus textos de incômodas verdades que deixam de ser um reflexo exclusivo do eu lírico para tentar atingir o olhar e a sensibilidade de um outro ser (des)conhecido e (i)nominável, mas que que pode habitar as entranhas de quem pousa os olhos nas páginas de sua poesia, conforme pode ser visto abaixo.
Esfinge (Gabriela Lages Veloso)
Calmaria.
Grito abafado.
Mergulho dentro de si.
Várias vozes falam em uníssono.
O silêncio é ensurdecedor.
Essencial.
Inadmissível.
Vital.
Várias imagens simultâneas.
O silêncio é caleidoscópio.
Paz.
Imposição
Espelho.
Várias linhas de um mesmo novelo.
O silêncio é tecitura. (Antologia Ruas descalças)
INÊS PEREIRA MACIEL é uma escritora e advogada maranhense que tem investido bastante na literatura. É autora do romance Virna (2014), do livro de crônicas Ramas do Tempo (2003), do livro infantil A Menina dos Olhos de Peteca (2014) e do livro de poemas Despida (2008). Seja em prosa, seja em versos, essa escritora preza pela poeticidade das palavras e faz questão de mesclar formas que vão do soneto aos versos livres, mas não descuida do ritmo, que se torna um elemento primordial na construção de seus textos. Seus temas são diversificados e vão desde mergulhos na metalinguagem até rememorações poéticas de passagens de sua infância, passando por observações do cotidiano, questões sociais e declarações de amor. Em seus textos, ela aposta na leveza das palavras e das construções sintáticas. Seus textos podem ser lidos e apreciados por leitores das mais diversas idades e formações sem perda de conteúdo e sem dificuldade de perceber as várias nuances “pintadas” pela autora caxiense em seu percurso poético.
Pétala no Chão (fragmento – Inês Pereira Maciel)
Vamos, jogue fora essa solidão,
Pois a poeira é pétala do chão...
Lance o olhar além da escuridão,
Pois a poeira é pétala do chão...
Plante a semente da nova ilusão,
Assuma todo o risco que é viver,
Recomece, refaça sem temer,
Pois a vida é um eterno refazer... (Despida, pág. 57)
A médica e escritora maranhense que há muitos anos adotou o Maranhão como morada, MÁRCIA SOUSA é uma escritora que, até onde sei, ainda não publicou um livro individual de poemas, mas que tem tido relevante participação no âmbito literário maranhense, participando de recitais e antologias. Seus poemas costumam trazer temas ligados tanto à saúde física quanto à mental em uma dicção bastante pessoal e que instiga o leitor a imaginar o que existe por trás das palavras não ditas. Em linhas gerais, a ideia de Márcia Sousa em seus poemas não é deslindar para os leitores o que poderia ser dito com outras palavras, mas sim demonstrar que é possível compor versos simples, mas com conteúdo.
Segredo (Márcia Sousa)
Atrás da porta
Há um segredo
Um medo
Um desejo
Há uma espera
Uma cama
Uma vela
Há um espinho
Um caminho
Sem volta. (V Antologia Sobrames-MA, pág. 184)
A também médica e escritora SOCORRO VERAS costuma trazer em seus versos as vivências do ambiente hospitalar, mas tratados de forma poética, de modo a não chocar quem não esteja habituado a esse meio. Em alguns momentos, seus poemas remetem a orações proferidas no intuito de salvaguardar quem esteja ou se sinta desprotegido nas desconfortáveis situações de enfermidade. Ela deseja de alguma forma “transformar as dores em flores”. Mas também seus versos, em alguns momentos, remetem a um erotismo velado, como pode ser antevisto em seu livro de estreia, já algumas vezes prometido, mas, ao que parece ainda não publicado, que tem como título “Eu, Nua e Pura: 100 poemas por amor”. Uma breve amostra dessa carga de sensualidade feminina pode ser vista no poema abaixo, originalmente escrito todo em letras maiúsculas, como ocorre em vários poemas da autora:
EXPLICANDO LÁGRIMAS (Socorro Veras)
VENTO DE MAR
ÁGUA DE CHUVA
PINGOS DE SUOR
GOTAS DE PRAZER (V Antologia Sobrames-MA, pág. 321)
Há muitas outras escritoras que nasceram ou que vivem no Maranhão e que merecem destaque. A relação não se esgota aqui e possivelmente pode dar margens para inúmeros trabalhos de análise.
LAURA ROSA, NOSSA VIOLETA DO CAMPO
José Neres
(Professor. Membro da AML, ALL, Sobrames-MA)
Para a professora Diomar das Graças Motta,
Para o poeta Wybson Carvalho:
dois pesquisadores da obra de Laura Rosa.
Há acontecimentos tão importantes para a sociedade como um todo que acabam eclipsando outras partes da biografia e até mesmo da obra de determinada pessoa. Foi isso que, de alguma forma, aconteceu com a poetisa e educadora Laura Rosa, escritora que adotou para si o pseudônimo de Violeta do Campo e que deixou importantes contribuições para a intelectualidade maranhense.
Filha da senhora Cecília da Conceição Rosa com um cidadão que não assumiu a paternidade da criança, Laura Rosa nasceu em São Luís, no dia 1º de outubro de 1884, teve como padrinhos o casal formado pelo Dr. Antenor Coelho de Souza e a professora Lucília Wilson Coelho de Souza. Esse contato favoreceu sua formação intelectual, que foi fortalecida por imersões no mundo da leitura e por uma ativa colaboração em jornais e revistas.
No final de 1909, ela concluiu as aulas do Curso de Normal, colando grau no ano seguinte. Logo após o fim de suas aulas, foi convidada para ser uma das conferencistas de um evento comemorativo pelo 130º aniversário de fundação da Biblioteca Pública. Na ocasião, apresentou um trabalho intitulado “As Crianças”, no qual traçou um breve perfil histórico de como as crianças eram educadas ao longo dos tempos em diversas sociedades. No segundo momento, dava conselhos relativos a como as mães deveriam cuidar de seus filhos.
Dois anos depois, em 1911, publicou o livro de contos intitulado “As Promessas”. Segundo informações registradas na época do lançamento, os textos dessa obra eram dirigidos tanto ao público adulto quanto ao juvenil. Com narrativas que conduziam a um fundo de moralidade e de noções sobre educação. Infelizmente, ainda não conseguimos encontrar exemplares desse livro, para um maior aprofundamento. Porém, a recepção da obra foi bastante calorosa, sendo recomendada para todos os públicos.
Logo após sua formatura, Laura Rosa passou em um concurso e foi designada para lecionar em uma escola mista no município de Caxias, onde ficou por alguns anos e estabeleceu muitos laços afetivos e profissionais. Depois conseguiu transferência para sua cidade de origem, onde ministrou aula por anos, até sua aposentadoria em 1944. Após o falecimento de sua madrinha, retornou para Caxias, onde novamente foi muito bem recebida e onde veio a falecer, no dia 14 de novembro de 1976, aos 92 anos.
Mesmo muito tendo contribuído para a educação e para a literatura do Estado, o nome de Laura Rosa atualmente é mais lembrado por haver sido ela a primeira mulher a ingressar nos quadros da Academia Maranhense de Letras, ao ser eleita para a Cadeira nº 26 da Instituição, no dia 03 de abril de 1943, e ser recepcionada por Nascimento Moraes duas semanas depois, no dia 17 de abril. Sempre discreta, em seu discurso de posse, preferiu silenciar totalmente sobre suas qualidades humanas e literárias e tecer elogiosos comentários ao patrono da Cadeira, o escritor Antônio Lobo, que havia sido seu professor durante sua formação para exercer o magistério.
Porém, um pouco do brilho dessa escritora foi destacado por seu sucessor na AML, o professor José Jansen Ferreira, que foi seu colega nas aulas de inglês e que lamenta o fato de os originais da primeira ocupante daquela cadeira não haver sido localizada para ser publicado, já que o anunciado livro de poemas “Castelos no Ar” (ou “Bolhas no ar” - conforme alertou o professor Clóvis Ramos em um de seus estudos) jamais foi localizado.
Os trabalhos de Laura Rosa permaneceram no ostracismo durante muito tempo. Até que a professora Diomar das Graças Motta, em sua tese de doutoramento, recuperou parte da obra e da biografia da escritora, recolhendo, posteriormente, e publicando em forma de livro a conferência “As Crianças” (Edufma, 2017, 53 páginas) e alguns de seus poemas dispersos em jornais e revistas, sob o título de “Poesia Reunida de Laura Rosa” (Edições AML, 2016, 84 páginas).
No entanto, é sabido que vários dos poemas de Laura Rosa ainda podem ser localizados em jornais, assim como parte de sua prosa, que ainda não foi explorada e quem sabe um dia pode ser resgatada e transformada em obras que deleitem os admiradores dessa escritora que precisa ser mais lida e analisada.
Um exemplo disso é o poema “aquelas Cruzes...” – publicado no Jornal “A Folha do Povo”, de 05 de novembro de 1925, e no qual a escritora mostra a todos nós, de modo bastante simbólico, quão efêmera é a vida e o caminho que invariavelmente será percorrido por todos os seres humanos.
AQUELAS CRUZES...
Laura Rosa (Violeta do Campo)
Vinde comigo, entremos devagar,
É francamente aberto este portal.
Por que hesitais? É permitido entrar.
Olhai de frente a Porta principal.
Mas, antes de transpor o patamar,
tirai, vos peço, a sandália social.
Que podereis, com uma bulha perturbar
o sono, que se dorme em leito igual.
Meditai dez minutos. Tantas luzes
a tremerem na cera derretida!
Braços abertos, vede aquelas cruzes...
Quase todas nos falam da tortura
de arrastá-las, senhor, por esta vida,
Neste vale de pranto e de amargura.
Simplesmente Carvalho Junior
José Neres
Em exatamente dez anos, um jovem professor da cidade de Caxias, graduado em Letras e com grande habilidade no manejo com as palavras, decidiu tirar seus textos da gaveta e publicá-los. Em pouco tempo, ele publicou cinco livros, participou de dezenas de antologias, promoveu a divulgação de escritores de sua terra, tornou-se uma das maiores referências culturais de sua região, criou inúmeros laços de afeto e de amizade por todo o Maranhão, foi eleito para duas academias de letras, andou por boa parte do Brasil levando sua poesia, caiu no gosto de inúmeros leitores e, silenciosamente, partiu rumo à eternidade.
Esse talentoso rapaz, que recebeu o nome civil de Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, decidiu rebatizar-se nas águas da poesia e começou a assinar seus trabalhos com o nome de Carvalho Junior. Dono de uma excelente dicção poética, ele gostava de brincar com as palavras e sabia inocular em seus versos o máximo possível da carga de poeticidade que os vocábulos podem aceitar dentro de um contexto literário.
Depois de algumas investidas em trabalhos quase artesanais, em 2011, ele publicou seu livro de estreia – “Mulheres de Carvalho”, que teve boa receptividade, principalmente por conta dos jogos de palavras das anfibologias que povoavam as estrofes e que divertiam o leitor, conduzindo-o a reflexões sobre variados temas, que vão desde os conceitos de poesia até a relação do homem com ele mesmo. Logos nessas primeiras páginas, Carvalho Junior já começava a chamar a tenção para seu estilo de escrita.
Em 2013, ele trouxe a luz seu livro “A rua do sol e da lua”, um livro no qual os poemas passeiam por uma mescla de lirismo e telurismo, sem cair nas tentações de pieguice que são tão comuns nesses tipos de texto. No ano seguinte, ele decidiu tratar dos questionamentos das variadas fases da vida em poemas aparentemente levas, mas que escondem reflexões acerca do estar no mundo e ao mesmo tempo servem como homenagem a pessoas que eram bastante caras ao poetas. Foi com essas ideias que ele lançou o seu “Dança dos dísticos”.
Leitor voraz dos grandes poetas das diversas literaturas, Carvalho Junior foi deixando os jogos de palavras e os chistes em segundo plano e acabou polindo o conteúdo seus poemas o com mesmo cuidado de um ourives bilaquiano preocupado com as formas. Desse modo surgiu, em 2017, o livro “No alto da ladeira de pedra”, no qual é possível perceber não apenas um trabalho com as palavras, mas também uma preocupação com os jogos de imagens poéticas que emanam de cada termo. Trata-se de um livro mais amadurecido, sem deixar de lado a carga de ironia de bom humor, que são duas características que perpassam toda a obra do poeta caxiense.
2019 foi a vez de Carvalho Junior publicar “O Homem-Tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia”, no qual a preocupação social, que é pontual em poemas dos demais livros, ganha maior projeção. Em uma mistura bem equilibrada de prosa poética e questionamento em versos, o poeta lembra que “somos feitos / das mesmas fomes / dos nossos pais”. Os textos desse livro tiveram uma recepção tão forte entre os leitores e admiradores do poeta, que ele passou a receber o epíteto de Homem-Tijubina nos círculos literários.
Vinham mais livros por aí. Um já totalmente organizado, com prefácio do professor e crítico Antônio Ailton, já se encaminhava para o prelo. Outros trabalhos começavam a ganhar vulto, como uma pesquisa sobre a vida e a obra de Déo Silva. Porém, no- dia 30 do mês de março, o poeta não resistiu às complicações oriunda da contaminação pelo Covid 19 e partiu desse mundo, indo levar suas poesias para outras paragens onde seus leitores ainda não podem ter acesso. (O Estado do Maranhão, 09 de abril de 2021)
UM LIVRO DO CARVALHO
José Neres
O primeiro janeiro de uma nova década chega ao fim. Os compromissos e as contas já planejam um novo e inevitável retorno cíclico. As páginas da internet, os noticiários da TV, os raros jornais impressos e os inúmeros grupos de mensagem teimam em reproduzir as mesmas notícias que, verdadeiras ou falsas, cairão no esquecimento tão logo outras informações comecem a ocupar o espaço das anteriores. Parece que nada muda neste mundo tão cheio de mudanças repentinas!
Cansado de tudo isso, o leitor corre seus olhos pela estante em busca de um livro que o ajude não apenas a passar o tempo e a atravessar os momentos difíceis que rondam toda a sociedade, mas que agora parecem querer esganar até mesmo os últimos vestígios de esperança. Os títulos se multiplicam. Alguns despertam um interesse momentâneo, outros não conseguem cativar o olhar... De repente, o dedo indicador, que servia de guia e freio para a velocidade dos olhos, para e, com a ajuda de seus irmãos, puxa o pequeno volume e as mãos começam a folheá-lo. É ele!
O leitor examina a capa, a lombada, as orelhas, a textura do papel e começa e navegar pelas primeiras palavras. Inicia pelo prefácio escrito pelo poeta e compositor Celso Borges. A cabeça balança afirmativamente, concordando com os elogios feitos ao estilo do autor. É hora de iniciar a leitura propriamente dita.
Eis que, ao abrir cuidadosamente o livro, salta das páginas uma pequena e incômoda lagartixa. Ou seria uma labigó? Talvez uma troíra? Quem sabe um calango? Mas ela encara o leitor e se apresenta como uma tijubina. Ou melhor, como uma tijubina disfarçada de homem. Ou será que seria um homem-poeta travestido de tijubina? Não importa. O importante é que ela trazia consigo muitos poemas e muitas mensagens carregadas de conteúdo.
“O Homem-Tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia” (Editora Patuá, 2019, 78 páginas) é um desses livros que incomoda e chega mesmo a desesperar quem se contenta apenas em digerir “o ovo do óbvio”. Página a página, além de citar Cecília, Mallarmé, Pessoa e Verlaine, o Homem-Tijubina acaba exalando uma fragrância de Manoel de Barros misturado com Cabral e Thiago de Mello, numa mescla de saberes, sabores e odores que não tem como objetivo esconder as dores do mundo, mas sim escancarar feridas sociais abertas por anos, décadas e séculos de injustiças.
Há momentos em que essa inquieta tijubina deixa de rastejar e passa a voar nas asas das palavras e da imaginação. Ela reluta em ser apenas aquilo para qual foi programada pelos códigos genéticos e pelas convenções sociais. O homem-tijubina salta de página em página do livro e marca olhos, mãos e ouvidos do leitor como suas maliciosas cipoadas capazes de imprimir tantos outros sentidos às palavras já cansadas do uso cotidiano.
Atenta a tudo, a tijubina sabe que habita um mundo no qual “tudo o que não é espelho / é umbigo”. Em sua tijubin’alma ecoam sentimentos de revolta e gritos de uma dor ancestral que se projeta em um futuro incerto. De suas tijubinices reflexivas escorrem um “espântano de cores”. Ela sabe que sobreviverá ao caos e que suas cipoadas talvez não atinjam a todos, mas pelo menos podem alertar a alguns.
Ao final do livro, essa tijubina pensadora decide não se recolher. Ela prefere passear pelos outros livros da estante e deixar neles suas marcas. Caminha atenta pelos livros de Bandeira, Quintana, Gullar, Coralina, Poe, Benedetti, Lorca, Shakespeare, Dante, Homero, Virgílio...
E assim, essa ancestral tijubina, que foi posta no papel pelo jovem e talentoso caxiense Carvalho Junior, decide que levará seu grito silencioso para quem se dispuser a ouvi-lo. Em seu grito há as sutilezas das cores e as rudezas das dores. Tijubina está e estará, para sempre, em todos os lugares, infinitamente forte como um carvalho.
O leitor fecha o livro. Coloca-o no lugar e segue sua vida tijubinando as lições e as metáforas... O mundo é um campo minado de metáforas. Ao pisar em uma delas, certamente teremos nossa ignorância amputada para sempre.
Nossa combalida literatura
José Neres
Há alguns anos, durante aulas, palestras e conversas acadêmicas, venho chamando atenção para o fato de que nossa literatura, além de estar perdendo visibilidade, não tem conseguido formar novas gerações de leitores. E isso é preocupante!
Sem pensar em procurar culpados ou mesmo em encontrar soluções mágicas que façam com que os autores nacionais voltem a ser lidos, admirados e reconhecidos em todos os rincões de nosso gigantesco Brasil, temos que primeiro refletir sobre o que vem acontecendo nas últimas décadas.
Se alguém tiver a curiosidade de buscar as listas de livros mais vendidos (seria bom se além de vendidos também fossem lidos!) logo perceberá que os autores brasileiros que se dedicam à prosa ou ao verso são raridades nesses rankings. Em uma rápida conversa com estudantes dos diversos níveis de ensino, é possível perceber que, excetuando-se aqueles nomes consagrados que são ensinados e cobrados em sala de aula, os escritores brasileiros são quase totalmente desconhecidos por parte de nossos alunos (e até de alguns professores!).
Alguém poderia alegar que a juventude atual lê pouco e não se interessa por livros. Mas isso não é bem verdade. Alguns desses garotos e garotas leem o suficiente para citarem dezenas de nomes de autores e títulos de obras. Mas quase sempre esse rol é composto por livros e escritores estrangeiros, principalmente os chamados best sellers, raramente nossos jovens citam algum escritor da literatura nacional.
E os raros nomes que ainda são lembrados nessas inquirições assistemáticas são aqueles que aparecem nas páginas dos livros didáticos, mas que, muitas vezes, costumam ser chamados de chatos ou sem graça pelos infantes. Esse contexto passa a impressão de que se um desses intelectuais de gabinete decidir que as aulas de literatura não dispensáveis, até mesmo os nomes clássicos de nossas letras cairão no esquecimento total em poucos anos.
Sinceramente acredito que muitos de nossos escritores (de ontem e de hoje) tenham talento suficiente para figurarem na lista de obras recomendadas para pessoas de todas as idades. Mas parece que faltam projetos didáticos, pedagógicos e políticos que façam nossas obras chegarem às mãos e aos olhos de nossos alunos. E isso deveria ocorrer nas três esferas do poder, não apenas de modo isolado, como ainda acontece, mais pelo esforço individual de algumas pessoas indignadas com a situação do que por um projeto de interesse mais amplo.
E, se até mesmo os antigos e consagrados escritores estão tornando-se desconhecidos, que dizer dos novos escritores e dos autores que mal têm seus livros circulando em sua cidade os em seu Estado? A resposta é obvia e, infelizmente, nada alentadora.
Infelizmente, em um país com aproximadamente duzentos e dez milhões de habitantes, uma tiragem de três mil exemplares, de um autor nacional, é comemorada como sendo espetacular, mas costuma demorar anos para esgotar-se em nem sempre será brindada com uma nova edição. Parece que vivemos em uma época na qual os livros de nossos autores são tratados ora como lixo, ora como luxo...
É de lamentar-se que em um país onde já houve e ainda há tantos talentosos escritores, os leitores interessados em tais obras sejam tão escassos.
É lamentável. Lamentável ao extremo.
O INQUESTIONÁVEL TALENTO DE WALDEMIRO VIANA
José Neres
Por mais que sejam inevitáveis, as despedidas raramente são esperadas e geralmente deixam em quem fica uma incômoda sensação e perda e a certeza de um vazio que nunca mais será preenchido da mesma forma. E, quando se trata de um adeus definitivo, essa incompletitude incomoda muito mais.
De um momento para outro, vem a notícia de que alguém partiu rumo ao misterioso infinito. Um telefonema, uma mensagem, uma postagem, uma conversa ou até mesmo uma frase captada quase sem querer... tudo pode trazer até nós a informação da qual queremos fugir indefinidamente. Mas um dia todos nós seremos alcançados pela ineludível certeza de que nossos amigos e entes queridos partirão.
Neste início de agosto, os admiradores da boa e bem elaborada prosa de ficção foram surpreendidos pela notícia do passamento do romancista Waldemiro Viana, um dos mais importantes narradores maranhenses dessa transição do século XX para o XXI. Porém, além de ser um prosador bastante criativo, muito lido e admirado por um grande público, Waldermiro Viana era muito estimado também por ser uma pessoa amável, de fino trato e que sabia fazer amigos por onde passava.
Na Academia Maranhense de Letras, que hoje, dia 10 de agosto, enlutada, completa seus 110 anos de vida, ocupava, desde 1984, a Cadeira número 02, patroneada por Aluísio Azevedo, fundada por Domingo Barbosa e que teve como antecessor o poeta Fernando Viana, pai do escritor.
É praticamente impossível alguém ler os romances de Waldermiro Viana sem se sentir como se fizesse parte da narrativa, torcendo pelas personagens e vivendo as tramas entrecotadas de aventura, sensualidade e refinado senso de humor. Seu estilo enxuto e carregado de cenas inusitadas prende o leitor desde os primeiros parágrafos e deixa a impressão de que escrever um romance é uma tarefa fácil e descomplicada.
Em seus 74 anos de vida, o escritor deixou para a posteridade os romances “Graúna em roça de arroz” (1978), “A questionável amoralidade de Apolônio Proeza” (1990), “O mau samaritano” (1999), “A tara e a toga” (2010), “O pulha fictício” (2013); “A vez da caça” (2015) e “Maria Celeste da terra e do mar” (2016), além de “Passarela do centenário & outros perfis”, livro no qual, de modo bem humorado, escreve sonetos nos quais traça o perfil físico e psicológico de seus pares na AML.
Apesar de ter uma produção literária nivelada por cima, dois dos livros de Waldemiro Viana acabaram tornando verdadeiros clássicos dentro do cânone literário maranhense: “Graúna em roça de arroz”, um romance com teor regionalista, mas que abarca temáticas universais que levam o leitor a refletir sobre a condição humana e as múltiplas bifurcações que entrecruzam os inúmeros encontros e desencontros que fazem cada leitor se identificar com as aventuras e desventuras das personagens.
O outro livro de grande aceitação pública é “A tara e a toga”, uma livre interpretação literária de um dos crimes mais conhecidos e comentados da história do Maranhão, quando o desembargador Pontes Visgueiro matou e esquartejou Mariquinhas, uma adolescente com quem mantinha uma relação de interesses físicos e financeiros. Mesclando pesquisa histórica com o preenchimento artístico de lacunas, o escritor construiu uma narrativa que desperta curiosidade, diverte e até mesmo assusta quem começa a ler o livro.
Em todas as suas narrativas, Waldemiro Viana sempre prezou por uma escrita límpida e carregada de nuances que levam os leitores a uma mescla de sentimentos e sensações que podem ir desde o riso desenfreado até a uma tristeza profunda por conta das intempéries por que passam as personagens.
Infelizmente, esse talentoso e gentil escritor nos deixou sem a possibilidade de um último aceno de despedida. Mas seu nome e suas obras ainda ecoarão ao longo dos anos e décadas como exemplos de pessoa digna e de livros que podem nos acompanhar em qualquer situação.
Este modesto artigo, mais do que um singelo apanhado da obra de Waldemiro Viana, é uma forma de agradecimento pela cordialidade e gentileza de um homem que nos deixou fisicamente, mas que sempre estará em nossas recordações.
A PROSA DE GERALDO IENSEN
José Neres
Paranaense que desde a juventude adotou o Maranhão como segundo lar, o escritor, ator e jornalista Geraldo Iensen é o tipo de intelectual que parece preocupar-se mais com o prazer de burilar os textos do que com a pressa de trazê-los a público. Isso possivelmente se reflete na exígua quantidade de livros lançados em contraponto à qualidade estética de sua produção literária.
Seja nos contos, seja nas narrativas mais longas, o jovem escritor parece demonstrar consciência do seu fazer literário, construindo personagens e cenários que estão de acordo com o ambiente retratado e com o interesse temático que se descortina ao longo das narrativas. É possível notar, desde as primeiras páginas de seus trabalhos uma preocupação com os aspectos psicológicos entremeados de abordagens sociais e de intrínsecas relações entre o meio em que estão inseridos os atores envolvidos com o processo narrativo.
Algumas pessoas provavelmente ficam incomodadas com a crueza da linguagem usada por Geraldo Iensen em seus livros, no entanto o uso de um nível menos formal e que utiliza palavras ditas como chulas ou vulgares é de essencial importância para o desenvolvimento do enredo e para a adequação das personagens e dos narradores ao contexto social em que estão inseridos. Mais que obras repletas de palavrões, como alguém poderia pensar à primeira vista, temos tentativas de ser fiel a uma realidade dura e crua, que encontra na escolha lexical um reflexo das mazelas sociais e das contradições de um mundo conturbado.
Em “O Legado de Torres”, o autor trabalha, a partir da construção dos contos que constituem o livro, personagens e personalidades que podem cruzar com o nosso caminho a qualquer momento. São pessoas de papel, mas que poderiam ser de carne e osso, repletas de conflitos internos, mas que, à primeira vista, caso vistas apenas pelos aspectos externos, poderiam passar despercebidas. Porém, levando a sério a ideia rodrigueana de que quando visto de perto, ninguém é normal, Iensen, joga luzes sobre seres comuns e, ao focar e amplificar seus pensamentos e comportamentos demonstra que mesmo as pessoas aparentemente mais insossas escondem dentro de si inúmeras características que mereceriam um aprofundado estudo individual.
Em sua premiada novela “Sêpsis”, Geraldo Iensen conduz o leitor por um intricado labirinto de ideias, comportamentos, obsessões e busca de verdades que nem sempre podem (ou devem) ser encontradas. Nesse livro, as personagens parecem mergulhar em um vórtice de acontecimentos que tem seus eixos deslocados frequentemente, possibilitando que o leitor mergulhe no fluxo dos acontecimentos e compartilhe da sensação de vazio e de vertigem na qual estão inseridos os personagens.
Seu livro de “Um cachorro, um vinho, uma herança e um sonho”, o leitor, além de ter de envolver-se com as personagens de cada um dos contos, tanto em seus aspectos físicos quanto no psicológicos, ainda tem que ter sensibilidade para sentir uma musicalidade que entrelaça os contos e faz com que cada trecho do trabalho faça sentido quando se chega ao final do livro.
Geraldo Iensen é um escritor bastante criativo e que burila seus textos de modo a não tornar suas narrativas apenas repositório de uma história, mas sim um modo de transmitir mensagens que têm a vida humana como centro de interesse.
DE UM PAI PARA TODOS OS FILHOS
José Neres
(Artigo publicado no Facebook de Os Integrantes da Noite, onde colaboro todas as segundas-feiras)
No meio de um mundo repleto de inseguranças, pelo menos duas certezas são evidenciadas todas as vezes que entramos em contato com os inúmeros elementos que compõem o nosso universo. Uma delas é a inexorabilidade da morte. A outra é que um bom pai ou uma boa mãe são capazes dos maiores sacrifícios pelo bem-estar dos filhos.
É praticamente impossível calcular-se todo o empenho dos pais na criação de sua prole. E não se está aqui falando de questões pecuniárias, pois isso pode se posto nas mais variadas planilhas e transformado em cifras. O que está em tela é a impossibilidade de mensurar todas aquelas variáveis de tempo, energia, afeto e dedicação que são aplicados diariamente em uma conta sem fim ou limites e que têm a capacidade de diferenciar um(a) mantenedor(a) de uma criança de um Pai ou de uma Mãe (com iniciais em letras maiúsculas mesmo).
Essa foram algumas das reflexões que vieram à minha mente enquanto lia o livro “Aos filhos, o legado da felicidade” (Novo Século Editora, 2019, 92 páginas) do médico e escritor Marcelo Leão, que nasceu no Piauí, mas que reside já há algum tempo em terras maranhenses, onde vem se tornando uma referência no campo da oftalmologia, sua especialidade.
O livro é composto de quarenta e quatro textos bastante curtos, escritos em uma linguagem simples e poética ao mesmo tempo, e que leva o leitor a despertar para uma série situações que de tão cotidianas raramente são discutidas abertamente em família. Temas como coragem, dinheiro, vícios, caridade, estresse, arrogância e escolhas, entre outros, desfilam pelas páginas do livro e convidam o leitor a desacelerar seu ritmo de vida para rever certos conceitos e observar a realidade sob outros prismas.
Os textos do livro podem ser lidos em qualquer ordem e se aproximam de uma conversa entre um pai (ou mãe) e seus filhos. Alguém pode questionar o fato de o(a) receptor(a) não ter direito à fala ou a questionamentos, parecendo aceitar todas as “lições” de modo passivo e acrítico. Mas isso é uma questão de olhar ou de opinião, já que pode haver também quem considere uma atitude muito respeitosa receber atentamente ensinamentos que são ofertados por alguém mais experiente e que apenas deseja o bem para o interlocutor. De qualquer forma, uma trilha sonora imaginária antecede cada uma das falas. É como se a introdução da canção “O Último Julgamento”, que fez sucesso na voz da dupla Milionário e José Rico, pudesse ser entoada em cada início de texto: “Senta aqui neste banco, pertinho de mim e vamos conversar...”.
Mas o escritor Marcelo Leão não pretende julgar ninguém em sua prosa poética. Sua intenção ao longo das páginas é prevenir e alertar, não apenas a juventude, mas a todas aquelas pessoas que precisem de um auxílio, para as armadilhas e obstáculos que podem ser encontrados durante a “longa jornada da vida”.
O autor teve o cuidado de omitir o pronome possessivo no título do livro, o que valoriza ainda mais o conteúdo. Não se trata de um pai preocupado apenas com o futuro e com a saúde física e emocional dos próprios filhos em um mundo cada vez mais líquido, conforme preconizava Bauman, ou com a própria prole imersa em uma sociedade de risco conceituada por Ulrich Beck, mas sim de um ser humano atento ao que existe de mais humano no mundo e que decidiu doar um pouco de seu tempo para mostrar que sempre há opções de caminhos a serem percorridos. E isso merece aplausos!
O contato com esse livro permite ao leitor perceber que todos os sacrifícios de pais e mães são nobres e que é possível deixar para nossos filhos algo bem maior e durável que os bens materiais.
Eu e Mário
José Neres
(Artigo publicado no Facebook de Os Integrantes da Noite, onde colaboro todas as segundas-feiras)
Venho de uma infância na qual a criança tinha mais tempo para ser criança. Para brincar, divertir-se, correr, suar e sonhar. Naquele tempo, os guris e gurias entravam para a escola com aproximadamente sete anos (dependendo do mês de nascimento). Quando era chegada a hora de começar o período de aula, havia todo um ritual. Os pais levavam a criança para a escola e era impossível não notar a lágrima que teimava em querer cair dos olhos tanto dos filhos quanto dos pais. O medo estampado no olhar do novo aluno era visível e o sorriso ofertado pelas professoras era o único alento entre e a eternidade que separava o começo das aulas até a hora em que a sirene anunciava o fim do horário.
Passei por isso no Centro de Ensino Número 02 do Gama, minha primeira escola, onde recebi as primeiras lições de ciências, matemática, geografia, história e gramática da Língua Portuguesa. Era ali que, uma vez por semana, tínhamos que levar um tapetinho ou uma almofada para, durante uma hora inteira, assistirmos ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, que passava na TV, e que imprimiu em mim as primeiras noções sobre o que era o mundo mágico da literatura.
Foi ali também no meio de uma aula de leitura que entrei em contato pela primeira vez com um amigo que me conduziria pelo mundo da poesia.
Foi mais ou menos assim: A professora chegou (como gostaria de lembrar o nome dela!) pediu que abríssemos o livro e começo a ler em voz alta um poema. Não fui alfabetizado com o B + a – Ba; B + e – Be, etc. Foi alfabetizado com leitura de textos de grandes autores de nossa Língua. O livro era bonito e aquele texto estava logo nas primeiras páginas.
A professora lia e nós acompanhávamos quase em uníssono, muitas vezes aos gritos:
Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.
O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.
E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin..
Depois era nossa vez de ler sem o auxílio da professora. Finalmente, dois ou três de nós éramos convocados para uma leitura individual. Era uma festa! Lembro que o texto tomava a página inteira e que havia uma bela ilustração de uma casa em um dia chuvoso com um anjinho de cabelos encaracolados tocando flauta. No auto da página estava o título (Canção da Garoa) e lá no cantinho, meio escondido, estava ele ou pelo menos o nome dele Mario... Mario Quintana.
A partir dali aquele gaúcho genial acabou, sem querer, fazendo parte de meu restrito círculo de amizade, uma espécie de amigo imaginário que passava dos setenta anos e alegrava os sonhos de um garoto de sete.
Antes de me mudar para Goiás e adotar Luziânia como meu segundo lar, conheci também em sala de aula outros amigos como Ferreira Gullar, Cecília Meireles, Ledo Ivo, Manuel Bandeira e alguns outros que sempre estiveram comigo. E Essas amizades de papel sempre foram fortes como o diamante e longevas como o próprio tempo.
Claro que nunca tive a sorte de ver o Quintana de carne e osso, mas ele me acompanhou durante o ensino médio, o curso superior, nas pós-graduações que fiz e em muitos livros traduzidos que li. Apresentei muitos trabalhos sobre ele, ministrei muitas aulas e palestras nas quais ele foi citado como exemplo de boa poesia.
Lembro-me que em maio de 1994, o Brasil inteiro chorava a trágica morte do ídolo Ayrton Senna e poucas pessoas perceberam que, discretamente, o poeta que foi três vezes rechaçado pela Academia Brasileira de Letras, deixava o mundo terreno para habitar definitivamente as páginas de seus quintanares.
Mário Quintana sempre esteve no meu caminho. Nunca atravancando, sempre me levando a conhecer outros mundos inimagináveis para mim, caso eu dependesse apenas de minha criatividade. Escrevi um longo artigo que foi publicado na Revista Língua Portuguesa Conhecimento Prático no qual estudava a relação de Quintana com a leitura; passei boa parte de uma tarde conversando sobre o poeta com seu conterrâneo e meu professor Sandino Hoff. E, no final de um período letivo uma simpática aluna chamada Érika me presenteou com uma Antologia Poética de Mario Quintana. Li toda a sua obra em várias edições e guardo seus livros com especial carinho.
Nesta semana (dia 05) Mario Quintana completa mais um ano de partida para a eternidade. Fisicamente ele não está mais aqui, mas sua obra sempre iluminará nossos caminhos.
APRENDER E ENSINAR DURANTE A PANDEMIA
José Neres
( Artigo publicado em O Estado do Maranhão, 12.05.2020)
Escola fechada não é sinônimo de educação paralisada.
Nos últimos meses, ao passar diante de uma escola ou outra instituição de ensino, tem-se a impressão de que o momento de pandemia pelo qual passamos paralisou tudo. Mas isso não é verdade. A economia não parou totalmente, embora tenha desacelerado em diversos setores. Nem todo mundo está em sua casa esperado o fim da crise. Da mesma forma, a educação não ficou paralisada.
Diante de uma crise sem precedentes na história recente do mundo, a instituição escolar e todos os seus atores tiveram que adaptar-se a uma nova realidade. Mesmo os professores mais resistentes às inovações tecnológicas foram forçados pelo contexto a reverem suas práticas e adotarem novas ferramentas para que o alunado continuasse tendo acesso aos conhecimentos necessários a uma formação acadêmica tão exigida em diversas ocasiões da vida.
Quase que dia para a noite, os professores tiveram que se apropriar de um novo vocabulário e de novas práticas. Palavras como hangouts, meet, zoom, live, podcast, classroom e teams, entre tantas outras, deixaram de ser vistas como modismo e se converteram em necessidades pedagógicas. Muitos docentes tiveram que começar o contato com esse instrumental tecnológico do zero, pois durante sua formação e atuação em sala de aula, não receberam nem mesmos os mais básicos rudimentos sobre o assunto. Porém praticamente todos deram lições de superação e atualmente já podem acrescentar essas novas habilidades e competências em seus currículos.
Os gestores tiveram que, em um curto intervalo de tempo, pensar em soluções exequíveis e que satisfizessem a uma maioria, sem deixar de lado os alunos e as famílias que vivem dificuldades específicas. Uma tarefa muito complicada e praticamente impossível de ser efetivada sem que alguém se sinta prejudicado. Comunicar-se com professores, alunos, famílias e administrar plataformas digitais, documentações e demais aspectos essenciais para o andamento do processo ensino-aprendizagem têm sido desafios constantes para esses profissionais da educação.
Por outro lado, os alunos também tiveram que adaptar-se à nova realidade. Ferramentas que antes eram vistas apenas como forma de interação com amigos ou de entretenimento transformaram-se em canais de recebimento e de envio de atividades escolares. O estudante teve que aprender assimilar informações e conhecimentos de outros modos que não o presencial em sala de aula. O estudante vem descobrindo que a aprendizagem pode se dar a toda hora e em qualquer lugar e que ele precisa gerenciar o próprio tempo e suas escolhas cotidianas.
Até mesmo a família, tantos dos docentes quanto dos discentes, teve que reaprender a lidar com pessoas que precisam de um espaço e de um momento específico para ensinar e para aprender. Além das práticas escolares, até mesmo as relações parentais tiveram que ser repensadas a partir do momento em que o distanciamento social imposto pela crise acabou forçando uma aproximação familiar.
Claro que, infelizmente, por causa da realidade econômica de muitas famílias, esse tipo de educação remota ainda pode ser visto como algo bastante seletivo. Nem todos têm acesso a celulares, computadores, tablets e outros mecanismos que podem ser conectados à internet. Para essas pessoas a pausa forçada tem sido muito mais dolorosa
Uma das possíveis soluções para minimizar esse problema poderia ser a inserção de conteúdos educacionais durante a programação da TV aberta, principalmente nos horários de maior audiência. Mas será que há interesse nisso?
As escolas estão fechadas. Alunos e professores estão em casa. Mas a educação não parou. Nem vai parar.
SAMARONE MARINHO: A SÍNTESE DA SÍNTESE
José Neres
(Artigo publicado no Facebook de Os Integrantes da Noite, onde colaboro todas as segundas-feiras)
Há algum tempo venho pensando em escrever algo sobre o professor e poeta Samarone Marinho, por quem sempre tive o mais alto apreço, seja pela figura humana, seja pelos aspectos intelectuais que se sobressaem logo nos primeiros contatos com esse homem discreto, reservado e de poucas palavras, mas que, conquistada a confiança, oferece aos amigos um largo sorriso e um sincero olhar de respeito a cada sílaba calmamente pronunciada.
Graduado em Geografia e em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Maranhão, com doutorado em Geografia Humana e pós-doutorado, pela USP, Samarone não é o tipo de intelectual que usa seus títulos como arma para tentar impor suas ideias ou para intimidar seus interlocutores. Ele prefere convencer pela dialética, pelo debate de ideias e pela argumentação sólida, coerente e bem fundamentada.
Como poeta, Samarone Marinho, embora não seja tão divulgado entre o público, é um dos mais respeitados pelas pessoas que se dedicam a estudar a literatura contemporânea e é um dos maiores e mais bem-sucedidos escritores de sua geração. Publicou os seguinte livros de poemas: Atrás da vidraça (2011), Incêndios (2013), Cão-Infância (2014) e Ser quando (2017); além do ensaio Manoel ama lembrar: uma interpretação à poética de Manoel de Barros (2014), e do livro de contos Beco da vida (2017), todos com boa aceitação por parte da crítica especializada, recebendo elogios de um leitor do porte de Alfredo Bosi, que escreveu:
“O texto se Samarone Marinho acaba desaguando em uma cerrada reflexão sobre a natureza, aquela Natura Naturans de Espinosa, absolutamente natural e absolutamente divina, força matriz em que se resolvem homem e paisagem, alma e corpo, o começo e o fim.”
Dono de um estilo sintético em que as palavras não são utilizadas como meros acessórios, mas sim como matéria-prima essencial para aquilo que será sugerido, descrito ou suscitado em cada verso, Samarone Marinho opta em seus textos por imagens poéticas que saem do convencional e convida/desafia o leitor a, em cada linha de cada poema, tentar decifrar o não-dito a partir do que é deslindado a partir de palavras/imagens que quase sempre estão sobrepostas em forma de um palimpsesto labiríntico no qual os leitores menos experientes podem acabar se perdendo, caso não tragam consigo o fio de Ariadne de muitas leituras anteriores.
Em Incêndios, temos uma série de diálogos intertextuais do autor com muitas de suas leituras no mundo das artes e, ao mesmo tempo, um constante questionamento sobre o ser/estar/existir no tempo/espaço. No poema Vertigo Effect (p. 60), o poeta dialoga ao mesmo tempo com Drummond, Sartre e Hitchcock ao questionar:
sem vastidão alguma
mundo sem Mundo
um corpo
a sacada leva a culpa
Em poucas palavras, o poeta maranhense consegue tecer todo um arsenal de imagens que precisam ser destrinçadas para fazerem sentido, como ocorre em Breve lembrança (p. 45), quando, de modo milimétrico expõe que:
uma lembrança vaga
foi o que restou do coma
[lápide 32]
Os poemas de Samarone Marinho quase sempre apresentam a plasticidade de uma tela pintada em breves traços e muitas cores. Nessa profusão de imagens e formas convertidas em um tom minimalista, o leitor é capaz de vislumbrar trechos de livros, peças teatrais, filmes, quadros ou meros frames de cotidianos que se repetem à exaustão, como é o caso do poema Dia anterior ao Sol (p. 28), do livro Atrás da vidraça, no qual o efeito fanopeico do texto traça um quadro que une o realismo do dia a dia à surrealidade de uma imagem que não queremos ver, mas que passa todos os dias diante de nossos olhos, estejamos ou não protegidos pela vidraça blindada da indiferença. Diz o poeta:
Descobre-se o inefável na esquina
O cãozinho cansado na sarjeta
O estilo praticamente telegráfico do autor é às vezes quebrado por fragmentos de prosa poética no qual os questionamentos humanos se multiplicam, não em busca de respostas simples e definitivas, mas sim para semear a certeza das eternas dúvidas e despertar no leitor a sensação de vazio existencial e de uma busca constante de algo que nem mesmo se sabe o que é ainda, conforme pode ser visto em vários blocos de poemas ao longo dos livros.
Os poemas do livro Ser quando seguem a mesma linha existencial-filosófica dos demais, com pitadas de crítica social e de mergulhos do eu lírico em múltiplas bifurcações de sentimentos conflitantes e com a certeza de que “não há autodefesa possível” (p. 18), pois “os pés mancam / no desacerto / do asfalto / tal faquir / em desassossegado / suor pela testa” (p. 44).
A cada página do livro, as angústias humanas se multiplicam e o leitor sente que todos os nós estão apertando ao mesmo tempo. O nó da garganta. O nó da gravata. O nó da corda sobre o cadafalso da existência humana. Até o nó de tudo o que existe em nós. Sem saber definir(-se), o leitor sente que está o tempo todo diante de uma coisa que “habita / em vago humano / o quase tudo”.
O livro Beco da vida é composto de sessenta microcontos e sessenta “aforismo da esperança”, que na verdade formam um conjunto com 120 breves poemas em prosa que presam pela fragmentação/multiplicação de imagens em torno de temas que são caros à necessidade humana de buscar respostas sem ainda (re)conhecer as perguntas. Em determinando conto é dito que “O cão insiste em mastigar a liberdade que nunca vem” (p. 53), para logo a seguir constatar-se que “Cada fio de cabelo no ralo da pia é uma busca, não uma perda” (p, 65).
Samarone Marinho é um poeta de muito talento e de muita força criativa. Seus poemas, contos e ensaios são escritos com um estilo que mescla a objetividade das palavras com a subjetividade de imagens que trazem a força “da última lágrima / levada pelo vento” (Atrás da vidraça, p. 17). Vale a pena ler suas obras e entrar em contato com um poeta que sabe usar o verbo tanto como lança quanto como escudo em uma eterna luta com as palavras.
NUNCA ESTOU ISOLADO...
José Neres
(Artigo publicado no Facebook de Os Integrantes da Noite, onde colaboro todas as segundas-feiras)
Para muitas pessoas, passar alguns dias em casa é uma tarefa dificílima, quase uma tortura sem fim. O tempo parece não passar, as centenas de canais de TV não trazem nada de interessante e as inúmeras redes sociais não parecem tão sociáveis assim. Como praticamente todos finais de semana ou estou em isolamento social ou trabalhando, permanecer em casa, na companhia da família, de minha cadelinha e de meus felinos é algo bastante salutar que pretendo aproveitar de forma bastante intensa. Ainda por cima tenho a sorte de durante quase toda a vida haver colecionado livros, livros e mais livros. O que faz com que este momento esdrúxulo de nossa história se torne uma oportunidade de colocar várias (re)leituras em dia.
Mas o que tenho lido? O que lerei?
Começo com a “Toda Poesia” de Paulo Leminski, um poeta para toda as horas e todas as oportunidades, dono de um estilo que liga temáticas humanas bastante inusitadas a uma fantástica escolha lexical. Em cada poema, Leminski se supera e surpreende o leitor com frases de efeito que vão além do mero jogo de palavras. Seus efeitos verbais não podem ser vistos com simples exibicionismos de um homem que tinha um conhecimento vasto e que sabia eternizar no papel as ideias que pipocavam em uma mente inquieta e criativa, mas sim como as marcas de uma genialidade que não via limites para brincar com a própria condição humana.
Levanto e passeio entre as páginas de Ítalo Calvino. Quanta criatividade em uma só pessoa! Impossível não se encantar com as dúvidas de “Palomar”, o homem que se angustia com as possibilidades de olhares que se descortinam diante de si ao se defrontar com uma mulher com os seios à mostra em uma praia. Bom adentrar no Castelo dos Destinos Cruzados, onde todos perdem a voz e dão a conhecer suas histórias pela sequência das cartas de tarô. As belas alegorias de “O Barão nas árvores”, “O Visconde partido ao meio” e “O cavaleiro inexistente” tornam qualquer isolamento social mais leve e divertido. O que dizer dos contos de “Um general na biblioteca”?, são fantásticos em todos os sentidos válidos. Calvino também nos brindou com os encadeamentos sem fim de “Se um viajante numa noite de inverno...”, uma coleção de experiências estilísticas que valem por um curso de teoria literária e de escrita criativa. Não posso esquecer também de suas “seis lições para o próximo milênio” e de “Por que ler os clássicos”, obras de inestimável valor nas quais o conhecimento literário e a erudição desse escritor parecem não ter fim.
Visito e revisito de tempos em tempos a explosão de violência literária que emana das páginas de Rubem Fonseca. Dois de seus livros eu ainda não havia lido – “Histórias curtas” e “Carne crua”. Embora sem a força narrativa de livros anteriores, esses dois não me decepcionaram. Violência, sexo, problemas psicológicos e narradores eruditos, que são algumas das características recorrentes de Fonseca, encontram-se espalhados pelas páginas desses dois livro que me remeteram imediatamente a releituras de “Diário de um fescenino”, “64 conto de Rubem Fonseca”, “O caso Morel”, “Pequenas Criaturas”, “Buffo & Spallanzani”, “A confraria dos espadas”, “E no meio do mundo prostituto só amores guardei a meu charuto”, “Histórias de amor” e tantos outros volumes que tenho em minha estante. De repente paro. Não li um dos livros. Que absurdo! Separo-o. tenho que devorar “O romance morreu”. Qual será a razão pela qual não o li antes? Essa falha deve ser corrigida. E será.
Aproveito a oportunidade para limpar os livros. Faço isso com frequência, mas a poeira parece não respeitar meu trabalho e insiste em pousar onde não deve. Separo alguns livros de História que servirão como referencial teórico para um artigo que pretendo escrever semana que vem e depois, em outra estante, deparo-me com a provocativa poesia do Glauco Mattoso. Seus fetiches, suas críticas mordazes e sua obsessão por pés escondem mais do que um escritor irreverente e cheio de picardias. Ali está uma mescla entre a tradição na elaboração de sonetos e uma observação atenta a tudo o que ocorreu em nosso país nas últimas décadas. Vale a pena ler Glauco Mattoso.
Correndo os olhos pela estante à minha frente, encontro uma edição da “Odisseia”, em tradução de Carlos Alberto Nunes. Ela está no local errado, deveria estre os clássicos universais, na outra estante. Porém vou deixar o livro ali mesmo, pois está na boa companhia de Umberto Eco (“O nome da rosa”, “Baudolino” e “A misteriosa chama da rainha Loana”, Pepetela (“A geração da utopia”) e Raul Seixas (“A verdade absoluta”) e meu antigo professor Johnny José Mafra (“Cultura clássica grega latina”), além de estar também bem pertinho de Pirandello (“O marido dela”) e James Joyce (“O retrato do artista quando jovem” – esses gênios se atraem!!!
Limpei várias prateleiras. Pelas minhas contas faltam agora somente doze. Ficam para depois. Já que agora tenho em mãos uma de minhas novas paixões literárias: Herta Müller. Depois de escrever uma crônica para a página d’O Integrantes da Noite, irei passar parte da noite deliciando-me com os contos dessa talentosa escritora que foge o comum e que faz de cada detalhe uma obra de arte em forma de palavras.
Isolado? Que tipo de isolamento é esse que me permitiu passear pelo mundo? Os livros nos oferecem esse tipo de liberdade. Vamos aproveitá-los.
NOSSO PRIMEIRO ROMANCISTA
José Neres
(Artigo publicado em O Estado do Maranhão)
Muitos são os talentosos escritores maranhenses que se dedicaram à criação de obras de ficção no formato estrutural de romance. Autores como Maria Firmina dos Reis, Aluísio Azevedo, Coelho Neto, Graça Aranha, Lucy Teixeira, João Mohana, Josué Montello, Conceição Aboud, Arlete Nogueira, Waldemiro Viana e José Louzeiro consolidaram seus nomes não apenas na província natal, mas também em todo o território brasileiro, alguns alcançando inclusive fama internacional.
No entanto, mesmo havendo um número relativamente grande de romancistas, ainda são raros os estudos acerca dessa produção intelectual. De certa forma, as letras maranhenses ainda podem ser vistas com um fértil terreno para as pesquisas em seus mais diversos matizes. Diversos são os narradores maranhenses que estão no esquecimento e cujas obras clamam por um estudo mais aprofundado.
Em termos cronológicos, o primeiro romance escrito por um maranhense seria o livro “Memórias de Agapito Goiaba”, de autoria de Gonçalves Dias, nos inícios dos anos de 1840, porém, por conta de uma possível censura, já que o livro traria revelações acerca de pessoas que ainda estavam vivas na época, o poeta recuou e deu fim aos originais, havendo circulado apenas alguns capítulos esparsos pela capital maranhense, como informou o biográfico Antônio Henriques Leal.
Provavelmente, então, dada a desistência de Gonçalves Dias de trazer à luz seu romance autobiográfico, cabe a João Clímaco Lobato o posto de haver sido (até se prove o contrário) o autor do primeiro romance escrito e publicado em terras maranhenses, pois em 1856, com apenas vinte e sete anos de idade, ele trouxe a público o romance intitulado “O Diabo”, ambientado no período da Balaiada e que trata das superstições e medos impostos às crianças com relação à figura do demônio, que tem o nome usado pela personagem Carlos, como forma de aterrorizar seus desafetos. Como se trata de uma obra de cunho romântico, o par formado por Carlos e Josina, remete a um final feliz. Segundo consta na tese da professora Antônio Pereira de Sousa, o livro foi bem recebido em Pernambuco, porém praticamente ignorado em terras maranhenses.
Figura hoje bastante ignorada até mesmo pelos pesquisadores da literatura maranhense, João Clímaco Lobato nasceu no dia 06 de agosto de 1829. Homem voltado para as leis e para as letras, ele foi, além de prosador, advogado, juiz municipal, jornalista, professor, procurador fiscal e teatrólogo. Além do supracitado romance, João Clímaco Lobato publicou também “A virgem da tapera”, “O rancho de Pai Tomé”, “O Cego de Ipujucã”, “e “Mistérios da Vila de São Bento”.
Nitidamente inspirado no livro “A cabana do “Pai Tomas”, publicado na década anterior por Harriet Beecher Stowe, o escritor maranhense publicou em forma de folhetins capítulos de seu “O rancho de Pai Tomé ou a escravatura no Brasil”, no qual ressaltava as condições precárias em que viviam os negros escravizados e cogitava um levante sangrento dos oprimidos contra os opressores. A ideia não foi bem vista pela sociedade da época e a publicação acabo sendo interrompida.
Como teatrólogo, o autor deixou peças como “Maria, a doida ou justiça de Deus”, “A neta do pescador”, “Mãe d’água”, “Paranguira” “O diabinho em meu quarto” e “Duas fadas”, além de haver adaptado seu romance de estreia para os palcos.
Alguns estudos ainda inconclusos apontam que possivelmente o pioneirismo desse autor (falecido em 1897, aos 68 anos) nas searas da prosa tenha tido início anos antes da publicação de “O Diabo”, quando ele teria publicado “A Cigarra Brasileira”. Mas de qualquer forma trata-se de um nome que mereceria ser mais explorado pelos pesquisadores.
A CANÇÃO INICIAL DE JOSÉ SARNEY
José Neres
(Artigo publicado em O Estado do Maranhão)
- Enquanto o mundo tentava se recuperar dos traumas da II Guerra Mundial, o poeta T. S Elliot recebia o Prêmio Nobel de Literatura, nos cinemas estreavam as versões de Macbeth (de Orson Welles) e Hamlet (de Laurence Olivier), o Brasil chorava a morte de Monteiro Lobato e recebia a notícia de que a Câmara dos Deputados iniciava o ano aprovando a cassação dos deputados comunistas, um jovem maranhense de apenas 18 anos, lia, relia e alinhavava os versos de um livro que seria publicado seis anos mais tarde.
O livro foi publicado em 1954, ano de grande efervescência política, marcado principalmente pelo suicídio de Getúlio Vargas. O título escolhido pelo autor: A Canção Inicial, deixava claro que seu autor, que já havia sido eleito para a Academia Maranhense de Letras e que também começava a destacar-se na vida política, não queria apenas aventurar-se nas searas da literatura, mas sim solidificar seu nome entre os autores de língua portuguesa.
A primeira edição do livro, com tiragem de apenas 250 exemplares, em formato de 13,5 X 23,5, tinha 44 páginas, com papa ilustrada por Cádmo Silva. Dividida em três parte: 1) As canções; 2) As baladas; 3) Outros poemas, a obra demonstra que seu autor, embora não inovasse na linguagem, parecia estar atento às mudanças estéticas que vinham ocorrendo nas artes após o advento do Modernismo. Inclusive é possível perceber-se ecos de nomes como Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Mário de Andrade nas páginas do livro.
Em uma mescla de sentimentalismo, engajamento social e jogos de linguagem, José Sarney traz em seus poemas uma preocupação com um todo que se forma de inúmeros fragmentos de imagens particulares. Em alguns momentos, o eu lírico prefere navegar na sensualidade de “Um corpo branco de plumagens garças / Onde os montes / são mistérios / ondulando na curva dos seios”. Mas também há espaço para questionar as injustiças sociais, como em Balada do Menino Solto, que retrata a triste vida de garotos pobres e sem perspectiva de um futuro melhor. Tais crianças são sintetizadas na alegórica figura de um “menino que morre / debaixo das rodas / e no dia seguinte não sai no jornal”.
Mesmo apostando na composição de poemas em versos livres e em uma liberdade com relação ao uso das rimas, o jovem Sarney ainda demonstrava estar ligados à tradições clássicas de suas leituras, como pode ser visto, por exemplo, na confecção do soneto Canto de Saudade e no constante uso de assonâncias e aliterações: “O sino bate / bate na torre / na torre velha / da velha Sé. // O vento vem / vindo de longe / o seu gemido” (Balada do Cais).
Em alguns momentos do livro, o suscitar de imagens poética em forma de palavras lembra a herança simbolista mesclada com uma carga de Romantismo contido pelas influências de um olhar voltado para um modernismo que começava a ganhar corpo. Independentemente dessas claudicâncias bastante compreensíveis na obra de estreia de um jovem que tentava se desvencilhar de toda uma tradição ancestral que ainda ressoava nas páginas de muitos poetas daquela geração, não se pode negar a beleza de poemas como Menina Morta, um refinadíssimo texto no qual a tessitura poética das palavras entra em conflito direto com a crueza das imagens que entristecem qualquer leitor mais sensível: “Espantem os carcarás / seus bicos não biquem / os olhos da menina”.
A Canção Inicial, de José Sarney é um livro que merece ser lido com atenção, pois conseguiu manter-se atual diante das mudanças. E hoje, mesmo diante de tantas tecnologias, ainda nos perguntamos: “Mundo, meu mundo / que vários caminhos / em ti vão dar?”
PAULO, UM APÓSTOLO DA POESIA
José Neres
(Artigo publicado no Facebook de Os Integrantes da Noite, onde colaboro todas as segundas-feiras)
sou, desde menino,
esta paisagem
esperando um afago.
(Binóculo II)
Há quem veja a poesia como uma espécie de passatempo para quem não tem o que fazer e resolve utilizar os momentos livres para derramar no papel ou na tela de um aparato tecnológico seus sofrimentos, angústias, desilusões, esperanças, amores contrariados, ódios, medos e todos os possíveis sentimentos que emanam desse ser humano que se sente tão poderoso, mas que no fundo ressente-se de uma fragilidade sem fim (ou melhor, com um fim previsível e nem sempre desejado). Mas há também quem considera a Poesia como algo essencial à própria existência, tal qual o respirar, o alimentar-se e o poder usufruir da imensa sensação (nem sempre verdadeira) de felicidade. Para essas pessoas, a Poesia está em todos os lugares e faz parte do consumo diário que as mantém vivas. Eu, assim como alguns tantos amigos (Carvalho Júnior, Hagamanon de Jesus, Natan Campos, Bioque Mesito, Salgado Maranhão, Roberto Franklin, Celso Borges, Luiza Cantanhede, Welinton Carvalho, Franck Santos, Neurivan Sousa, Lúcia Santos, Ricardo Leão, Adriana Gama e tantos outros) fazemos parte desse segundo time. O grupo que vê Poesia como parte essencial da vida.
Como sempre gostei de Poesia, fico feliz quando chega às minhas mãos um livro que emana poeticidade e que foi trabalhado com esmero (e não estou falando do excelente trabalho gráfico, que muitas vezes faz obras parecerem bem melhores do que realmente são) e com o cuidado necessário para transformar cada arranjo de palavras em verdadeira obra de ourivesaria literária. Por isso, fiquei encantado ao receber o mais recente livro desse colega de profissão e de gosto literário chamado Paulo Rodrigues, um homem tranquilo, de gestos serenos, de palavras apaziguadoras e que vem construindo nos últimos anos uma obra sólida capaz de sobreviver à incessante passagem do tempo.
Abro o envelope e ali está o premiado livro Uma interpretação para São Gregório – segundo lugar no Concurso Literário da União Brasileira dos escritores, seção do Rio de Janeiro. A edição muito bem cuidada da Editora Penalux, remeteu-me logo às palavras do poeta Mario Quintana, para quem os livros deveriam ter muitos espaços em branco, para que as crianças pudessem decorar as páginas com imagens que passariam a fazer parte do poema.
Paulo Rodrigues – de quem também já li O Abrigo de Orfeu (2017) e Escombros de Ninguém (2018) – é um poeta experiente, dono de vasta leitura e que sabe controlar seus ímpetos de colocar cada poema em qualquer lugar e de qualquer jeito. Ele parece pensar não apenas o texto de forma individual, mas também planejar a sequência de poemas que formarão um conjunto harmônico na composição do livro. além de excelente poeta, Paulo Rodrigues é também um ensaísta e crítico literário bastante equilibrado, o que de alguma forma acaba contribuindo para que sua poesia se torne mais refinada.
Como sempre acontece comigo, deixo para ler por último o prefácio (muito bem escrito por pelo poeta Fernando Abreu) e o texto de “orelha” elaborado pelo também poeta Dudu Galiza. Essas providências fazem com que eu aproveite com mais intensidade e sem as “contaminações de leitura” cada um dos poemas do livro. sou fisgado logo pelos versos de “Café preto”, um cromo poético de uma realidade cruel que, ao ser vertida em forma de poesia, ganha uma beleza que preferíamos que não existisse, mas o poeta é esse ser que retira até da dor e da amargura a matéria-prima com a qual encanta seus leitores.
Os poemas curtos, quase telegráficos, no lugar de favorecerem a aceleração da leitura, fazem com que eu estacione em cada estrofe para refletir e lembrar que aquelas cenas agora traduzidas em forma de poesia já fazem, infelizmente, parte da vida de todos nós. Sem panfletismo e sem alarde, mas com muita competência verbal, o poeta caxiense faz o leitor mergulhar em um imenso campo de possibilidades de interpretações e leva todos o que tiverem contato com o livro a uma reflexão acerca de questões que vão do social ao psicológico, partindo quase sempre do particular para alcançar a universalizante necessidade de descrever, traduzir, vivenciar e compreender a dor humana em seus mais diversos matizes e nuances.
Ao longo do livro, o poeta, professor e ensaísta Paulo Rodrigues faz despertar imagens que vão além do mero alinhar palavras no papel. Ele tece um caminho que se bifurca em inúmeras trilhas, cada uma delas levando a um universo de temas que vão do nascimento à morte, passando pela infância, pela fase adulta e pela inadiável velhice que espreita quem tem sorte de sobreviver às fases anteriores. Nessa trajetória, “os calos nunca secaram/ mas os pés esqueceram o caminho” (p.45), “a escuridão da memória/ incendeia a relva” (p. 65) e, apesar de saber que “a noite não suporta/ convenções, nem lirismo” (p. 31), é sempre bom ter em mente que é importante conservar essa “estranha mania/ de felicidade” (p. 71), pois ser feliz deveria fazer parte do currículo de todos nós.
Uma interpretação para São Gregório é um livro que pode (e deve) ser lido por qualquer pessoa que seja apaixonada por literatura. Trata-se de uma leitura para os olhos, para o cérebro e para o coração, já que são páginas que despertam o que há de mais humano dentro do próprio ser humano: a beleza de incomodar-se com o sofrimento alheio.
OS SÁBIOS DITADOS DE NOSSOS AVÓS
Publicado no jornal Correio do Estado (MS) em 07.05.2019
José Neres
(Professor. Membro da AML e da Sobrames)
Para muitas pessoas, idosos são sinônimo de rosto vincado pelas rugas, corpo cansado pelas duras batalhas contra o tempo e ideias ultrapassadas. No entanto, quando recebidos e acolhidos com a devida atenção, é possível perceber que por trás de cada uma dessas retinas se esconde todo um universo de saberes que, embora possam ser interpretados por alguns como algo obsoleto, ainda tem muito a ensinar tanto às pessoas de hoje quanto às que ainda virão.
Uma dessas fontes ancestrais de conhecimento e de sabedoria é o imenso arsenal de ditados populares que são evocados para explicar, analisar ou replicar situações e ideias tidas como modernas. Usando frases curtas, com alguma, senso de humor e bastante coerência nossos avós conseguem trazer à baila algumas noções que andam meio esquecidas em um mundo repleto de tecnologias, dados e informações acumuladas que nem sempre se transformam em conhecimento.
Desse modo, em um momento histórico que valoriza as posses e os oportunismos, nossos idosos dão lições de ética quando afirmam que “olho viu, mão não buliu”, ou seja, que não podemos nos apossar daquilo que não é nosso, que devemos deixar tudo no mesmo lugar e que a honestidade deve prevalecer. Quando, em buscas de likes, curtidas e compartilhamentos, as pessoas postam fotos com personalidades e celebridades que nem sempre são exemplo de bom caráter e de reputação ilibada, nossa querida avó solta um breve sorriso e nos leva a refletir alertando: “diga-me com que andas e eu direi quem tu és” ou ironiza dizendo que “antes só que mal acompanhado”.
Em tempos nos quais os acusados não se defendem dizendo que são inocentes, mas sim tentando provar que as notícias são falsas – as chamadas fake News – ou dizendo que todos estão no mesmo nível ético, nossos amados idosos alertam que “onde há fumaça, há fogo”, isto é que não se deve “colocar a mão no fogo” por alguém a quem defendemos cegamente, apesar das evidências, afinal “quem se mistura com porcos, farelos come”. Todos sabem também que “a mentira tem pernas curtas” e um dia, cedo ou tarde, toda a verdade virá à tona, então quem agora acredita piamente nessa onda de verdades fabricadas, ficará mais atento, afinal de contas “gato escaldado tem medo até de água fria”.
Os portadores dessas sabedorias populares costumam pregar que a paciência é uma grande virtude a ser preservada e cultivada, sabem que “devagar se vai ao longe” e que a ambição pode pôr tudo a perder, pois “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” e que “a pressa é inimiga da perfeição”. Embora alguns desses idosos apreciem passeios e visitas a casa de parentes e amigos, sabe que o lar é um “porto seguro em mares tempestuosos”, que “quem boa romaria faz, em sua casa está em paz” e que o aconselhado é sempre manter “cada macaco em seu galho”.
Contudo, às vezes, diante de tantas injustiças, nossos idosos acabam também apostando na ideia do “olho por olho, dente por dente” e creem que “ladrão que rouba ladrão merece cem anos de perdão”. Desconfiados, eles sabem que “as aparências enganam” e que “cesteiro que faz um cesto, faz um cento e, tendo cipó, faz duzentos”, logo é importante andar sempre “com um pé atrás” e “dormir com um olho aberto e um fechado”, afinal “precaução e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”
Nossos idosos são sábios. Quem se dispõem a passar um tempinho ouvindo suas experiências jamais sairá “com as mãos abanando”. Muitos nunca colocaram os pés em uma universidade, mas são doutores na arte de conhecer as entranhas da vida, raramente ficam totalmente parados, pois sabem que “camarão que dorme a onda leva”. São pessoas experientes, velhas não. Afinal: “velho é o mundo”.
Matadouro de Vozes
José Neres
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Não sinto a pulsação dos muros,
A umidade das horas
Ronaldo Costa Fernandes é um daqueles intelectuais que conseguem trilhar com desenvoltura por diversos caminhos das letras. É muito respeitado como ensaísta, diversas vezes premiado por seus textos em prosa (romances, novelas e contos) e, nas últimas duas décadas, vem produzindo poemas de excelente qualidade, como pode ser visto nos livros: Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004), A máquina das mãos (2009), Memória dos porcos (2012) e O difícil exercício das cinzas (2014).
Bastante seletivo em suas leituras, na elaboração de seus textos e na organização de suas obras, o escritor maranhense trouxe à luz no final de 2018 mais um livro: Matadouro de Vozes, um conjunto de poemas mesclando um tom filosófico com quase imperceptíveis – à primeira vista – apelos políticos e sociais incrustados nas entrelinhas de versos harmoniosos entre si.
Matadouro de Vozes é um livro extremamente metafórico com versos que, quando são isolados e tirados do contexto do poema, podem passar ao leitor uma ideia de facilidade e/ou de superficialidade, mas que, quando lidos em sua integralidade despertam a sensação de um incômodo existencial e social que permeia experiências compartilhadas por todos os seres humanos, dito por poucos e transformado em palavras escritas por raros artífices dos versos. De alguma forma, em seu novo livro, Ronaldo Costa Fernandes consegue tramar e explicitar uma nem sempre possível imbricação entre o que é aparente para as pessoas e o que se esconde dentro de cada um de nós, seres humanos limitados quase sempre pelas próprias limitações impostas e aceitas como verdades incontestáveis.
Logo no primeiro poema do livro, o leitor se depara com uma afirmação que pode parecer pessimista: “a tristeza é sempre mais pesada que o ar”, mas que serve como portal de entrada para os demais textos do livro. Cada estrofe do livro causa a mesma incômoda sensação de “uma fruta que cai / e não alcança o chão”, que aparece como desfecho do poema intitulado “O egoísmo da carne”. O peso dessa tristeza existencial que permeia os versos do livro de Ronaldo Costa Fernandes leva o leitor a percorrer caminhos poéticos perturbadores e conturbados, pelos quais algumas vezes a “mesa tem cavernas / onde o labirinto das teclas / penumbram becos sem saída”.
Pouco depois da metade do livro, aparece o poema “Criadouro de vozes”, que serve como contraponto do título da obra, mas que, ao contrário dos demais textos, abre caminho para esperança de dias melhores, com o lançar das “sementes do caminho” e o “abrir de estradas”. Ao utilizar essa paradoxal metáfora de colocar um criadouro de vozes quase no centro de um universo preparado para abafar, silenciar e matar as vozes que ousam se levantar, o poeta acaba revelando um pouco de sua intenção. Assim como Drummond fez uma flor furar o asfalto e desafiar os sombrios momentos pelos quais passava o mundo, Ronaldo Costa Fernandes faz com que murmúrios que deveriam ser silenciosos alcancem a dimensão de palavras, falas, gritos e berros. De alguma forma, o poeta pode até morrer, mas jamais silenciar. Eis uma das mensagens subliminares do livro.
Matadouro de Vozes é um livro de protesto quase inaudível para quem se acomoda com as aparências das coisas sem buscar a essência escondida em algum ponto às vezes quase indevassável da esfera do SER humano. E, ao mesmo tempo, um alerta para quem se incomoda com a apatia colorida dos chamados tempos de pós ou ultramodernidade. Os poemas do livro devassam o presente sem a necessidade de negação do passado e deixam a lição de que “o futuro é um bicho hospedeiro do homem”.
OS DESLIMITES DO COMPARTILHAMENTO
José Neres
Professor e membro da AML
(O Estado do Maranhão, 21 de novembro de 2017)
Hoje em dia, por questão de gosto, de modismo ou mesmo de necessidade, milhões de pessoas acessam os diversos aplicativos de comunicação instantânea a fim de enviar e receber notícias, manter-se informadas ou mesmo forma de entretenimento.
Os aparelhos de telefonia móvel, popularmente conhecidos como celular, há muito deixaram de exercer sua função primeira e a cada nova versão que chega ao mercado, recebem mais funções. Rapidamente tornaram-se produto de primeira necessidade para muitas pessoas que têm a seu alcance, em um mesmo objeto, prático e funcional, ao mesmo tempo, agenda, rádio, TV, calculadora, editores de texto, câmera fotográfica, rádio, cronômetro, relógio, conversores de dados e uma infinidade de funções que tornaram os aparelhos uma extensão da casa, do escritório e até mesmo da vida sentimental.
Essa multiplicidade de funções elevou essa aparentemente simples máquina à categoria de objetos inteligentes. porém isso também parece ter limitado um pouco mais a própria capacidade humana de discernir sobre o que é ou não permitido dentro das relações pessoais e profissionais.
De repente, diante de tanta tecnologia e de tantas possibilidades de superar as barreiras do tempo e do espaço, o homem se vê perdido dentro das próprias escolhas sobre o que pode ser ou não adequado dentro das relações sociais cada vez mais fluidas. Um desses dilemas se relaciona com os cada vez mais populares aplicativos que permitem interação de textos, áudios e imagens entre grupos restritos de usuários, os chamados grupos de comunicação, que geralmente são administrados por um ou vários membros desses grupos.
A ideia básica dessas comunidades é permitir que todos os membros dos grupos tenham acesso às informações que são compartilhadas, seja com finalidades lúdicas, seja com objetivos laborais ou educativos. No entanto, mesmo que em alguns desses grupos haja regras explícitas quanto ao que pode ou não ser postado, alguns usuários chegam a ultrapassar o limite do tolerável e se tornam inconvenientes por conta da falta de limites com relação ao que é dito e/ou compartilhado.
Munidos da ideia de que todos têm direito a expressar suas ideias, tais pessoas geralmente se esquecem de que seus direitos devem sempre fazer limite com os direitos dos próximos, pois ninguém é obrigado a compartilhar dos mesmos gostos e opiniões dos demais e até mesmo a noção de que é preciso aceitar as diferenças e ser tolerante com as atitudes alheias perdem sentido diante de algumas atitudes que merecem repreensão.
Se o cidadão ou cidadã aprecia ver cenas de estupros, decapitações, linchamentos, homicídios, sexo explícito, nudez, pedofilia, maus tratos a animais, correntes religiosas, violências em diversos níveis, acidentes, dissecação de cadáveres e imagens escatológicas deve lembrar-se de que há pessoas que não comungam do mesmo gosto e que devem ser respeitadas em seus direitos de não receber tais vídeos, áudios e fotos. Em caso de compartilhamento em grupos criados especificamente para esses fins os únicos obstáculos são de origem legal, já que, pelo menos em teoria, todos os membros têm os mesmos objetivos.
Contudo não é muito agradável quando, ao acessar o ícone de um determinado grupo que tenha uma finalidade específica, a pessoa se depara com postagens que destoam do objetivo daquela comunidade. O que se percebe é que o bom senso parece não ter seguido a mesma linha de progresso que tiveram os aspectos tecnológicos. Desse modo algumas pessoas têm investido pesadamente na compra dos melhores aparelhos, mas não investiram no aprimoramento do bom senso.
Então, antes e postar ou compartilhar algo em qualquer um dos grupos dos quais fazemos parte, é importante mergulhar nas serenas águas do bom senso.
EM TEMPO DE VOZES ESGANIÇADAS
José Neres
Houve um tempo em que para alguém ser considerado cantor(a) era essencial ter uma voz que, embora nem sempre fosse bela, combinasse afinação, harmonia e ritmo em dose certa, sabendo mesclar altos e baixos melódicos sem exageros e sem deixar o ouvinte com a sensação de que seus tímpanos iriam explodir na próxima nota. Naquela época, o público se apaixonava pela voz de seus ídolos e raramente tinha a oportunidade de conhecê-los pessoalmente.
Havia também artistas talentosos que encantavam os ouvintes com a capacidade de modular a voz e alcançar timbres inimagináveis para a maioria das pessoas. Paralelamente a isso, também existiam aqueles casos em que os cantores apostavam em um repertório que primava pelas soluções poéticas, dando vida às composições elaboradas com todo cuidado por compositores que dominavam a arte de transformar o cotidiano aparentemente sáfaro em preciosidades musicais que se eternizavam na memória dos fãs.
Essas parcerias entre melodiosas vozes e letras bem elaboradas renderam bons momentos na história da música de qualquer nação. Alguns compositores foram justamente alçados à condição de escultores de versos, e muitos intérpretes embalaram diversas gerações, transformando suas interpretações em símbolos de épocas que se eternizam com a sensação de novidade e de renovação.
Nas últimas décadas, porém, para ser cantor(a), ninguém mais precisa ter apurada técnica vocal, conhecer os rudimentos de canto ou debruçar-se sobre os clássicos da música popular ou da erudita. Alguns confundem a arte de exprimir-se através da música com o desastre de espremer-se durante a música. O acesso a equipamentos que permitem a manipulação de vozes fez com que competentes técnicos conseguissem, transformar notas destoantes em sucessos tão imediatos quanto efêmeros. A exposição constante nas diversas mídias conseguiu o feito de transformar em fenômenos musicais pessoas com pouco ou nenhum talento vocal, mas com boa aparência, físico privilegiado e empresários ávidos por mais sucesso.
Assim como saber cantar deixou de ser uma condição indispensável para transformar alguém em cantor, a tessitura artística das letras das músicas também passou a ser algo supérfluo, em alguns casos até mesmo são um obstáculo para os postulantes ao posto de ídolo musical da próxima temporada. Basta combinar palavras de ordem, de preferência com duplo ou triplo sentido, criar uma sequência que sirva como coreografia ou repetir insistentemente sons que combinem com os arranjos previamente elaborados para que esses autodeclarados compositores consigam emplacar mais um sucesso, que será esquecido tão logo outra composição mais pegajosa apareça no mercado.
Com uma agenda sempre lotada, ingressos esgotados e uma multidão de fãs, tais cantores, durantes os shows ao vivo nem mesmo precisam entoar os próprios sucessos. Basta ensaiar as primeiras palavras, levantar o microfone e ouvir o público anestesiado cantando as canções, às vezes até de modo melhor do que o original. Com os braços erguidos, lágrimas escorrendo pelas faces e com a coreografia devidamente decorada, o público vai à loucura. Nem mesmo dá tempo de perceber que os ídolos, nos raros momentos em que decidem cantar, desafinam, atravessam e saem do tom.
Mas isso não interessa, pois, para quem pouco sabe de harmonia, o importante é que também exista uma época em que berros, gritos, gemidos, grunhidos e vozes descompassadas sejam confundidos com música. Exemplo? Não! Cada já um deve ter sua lista particular.
RITA NO POMAR DE SEUS (DIS)SABORES
José Neres
Há inúmeras formas de contar a mesma história. Os escritores, pelo menos em teoria, são pessoas privilegiadas que encontram nas infinidades de tessituras possíveis aquela que traduz da maneira mais artística possível aquilo que foi imaginado ou que foi vivido e agora retorna em forma de ficção. Os bons escritores, por sua vez, são seres ainda mais privilegiados, pois conseguem eliminar uma gama de possibilidades narrativas e se concentram não em apenas contar um fato, mas em tirar dele detalhes que casam com as expectativas dos leitores que não se contentam tão somente com o alinhavo de uma história bem contada, mas que exigem que esses fatos sejam costurados com a maestria e a perícia dos grandes artesãos.
Um desses bons escritores que, embora venha construindo uma premiada carreira literária, ainda não tem seu nome divulgado com o merecido destaque, esteve recentemente no Maranhão, que por sinal é sua terra natal, e aqui fez o lançamento do seu romance Rita no Pomar (Editora Novo Século, 2017). Trata-se de uma narrativa de quem tem domínio não apenas das teorias narrativas, mas também das técnicas ficcionais que fazem o leitor ficar preso à obra do começo ao fim da narrativa. O autor é o professor, critico e prosador Rinaldo de Fernandes, um maranhense radicado na Paraíba e que vem se destacando como um dos mais promissores homens de letras deste começo de século XX.
Perseguida pelo próprio passado, sem coragem de confiar em mais ninguém, a protagonista-narradora sente necessidade contar seus anseios, mas sabe que falar do passado é abrir chagas que talvez nunca cicatrizarão e que talvez ela mesma não queira que cicatrizem, mas faz questão de esconder dos olhares inquiridores das pessoas que surgem praticamente do nada e começam a fazer parte de sua vida mesmo quase sempre contra a sua vontade. Para quem contar então os tantos dissabores que lhe foram reservados pela vida? O marido, a mãe, o namorado, o patrão, a empregada da mãe e todas as outras pessoas com quem Rita cruza em sua jornada parecem merecer fazer parte de seus segredos, mas nenhuma é digna de penetrar nos recônditos de seus sofrimentos. Restam então como silenciosos confidentes seu diário onde registra parte de sua vida, os pequenos contos de viés autobiográfico nos quais expõe flashes de seu cotidiano e seu ouvinte-mor, o cachorro Pet, que, ora atento, ora distraído, ouve todas as angústias de sua dona.
Escritor experiente, Rinaldo de Fernandes constrói uma lúcida narrativa em que a protagonista tem consciência do que pode e do que não pode contar e até onde pode chegar em cada um dos trinta e quatro breves capítulos que compõem o livro. Como em um quebra-cabeça, os mistérios vão se descortinando pouco a pouco e em cada passagem Rita se desnuda um pouco mais aos nossos olhos, deixando o leitor entrar em contato com suas intimidades e com os segredos que guarda trancados no inexpugnável cofre chamado memória. O leitor, assim como o cãozinho Pet, vai descobrindo aos poucos a intrincada personalidade de Rita, uma personagem esférica que cada vez que se mostra um pouco, leva o leitor à reflexão e a constantes indagações acerca do passado e das motivações que levaram aquela mulher a deixar o jornalismo e as revisões de textos para viver em um lugarejo distante, sem família, exercendo atividades braçais e subalternas.
O pomar, local onde a personagem se sente muito à vontade, em uma leitura paralela, torna-se uma bela metáfora da própria vida de Rita. É um lugar verdejante, cheio de frutos, mas ao qual quase ninguém tem acesso, as frutas, assim como os trechos da história da protagonista, apodrecem e somem sem que as demais pessoas possam aproveitar tantos sabores, mas aproximando-se o suficiente para sentir o sufocante odor de algo que acaba fazendo parte de um incômodo desconhecido. Rita não sente medo do hipotético fantasma que “protege” o pomar da exploração das demais pessoas da região. Isso ocorre não por ela ser da cidade grande, por haver estudado ou por ser cética, mas sim, por ela ser obrigada a passar tanto tempo cercada pelos próprios fantasmas, que são alimentados cotidianamente pelos frutos de uma verborragia que mais esconde do que mostra, mas que nesse esconder revela tantos segredos.
Como todo bom narrador, Rinaldo de Fernandes trabalhou com cuidado tanto com início quanto o desfecho da obra. A última página elucida toda a trama e faz o leitor dividir-se entre inúmeros sentimentos com relação a Rita, e a frase final do romance revela nuances inimagináveis para uma personagem que acabou se despindo diante do leitor, do cãozinho Pet e de si mesma.
Para terminar o livro, o autor acrescentou uma fortuna critica sobre a obra. Renomados nomes da crítica nacional, como, por exemplo, Silviano Santiago deixam sua impressão sobre a obra e comentas aspectos que podem passar despercebido ao leitor iniciante ou que leu o livro com muita pressa ou paixão.
Realmente, há inúmeras formas de narrar uma história. E Rinaldo de Fernandes ajudou Rita a contar a sua com o primor característico dos grandes cultores das letras. Em suma, o livro é um belo e saboroso fruto colhido do pomar de um escritor que faz de seu estilo de escrita um presente para seus leitores.
AS LENTES DA POESIA
José Neres
Amarga ânsia posta em cálice.
Nenhuma das duas faces da moeda...
Nem cara, nem coroa,
Apenas o que em mim ressoa.
(Outra face – Rosemary Rêgo)
Muitos só conseguem conceber a poesia como um emaranhado de rimas e de soluções métricas, mesmo que a construção esteja vazia de sentido e carente de imagens. Felizmente, há também aqueles que sabem que o ato de fazer poemas não consiste apenas em alinhar palavras e forçar terminações esdrúxulas. Para tais pessoas, a Poesia é o fluir da própria essência vital de cada pessoa que lê e/ou escreve, não importando o quando, o onde e o para quem. Poesia é indefinível. Para uns, inútil; para outros, vital.
É exatamente nesse segundo grupo que podemos encaixar (sem muito esforço) a figura de Rosemary Rego, uma jovem escritora que, dede a metade da década de noventa, vem procurando ocupar seu espaço no cenário literário maranhense e para quem o ato de passar para o Papel suas emoções parece ser tão fundamental como o de viver, como o de sorrir, como o de sonhar.
Dona de variadas e importantes leituras, a escritora não faz questão de esconder os caminhos trilhados rumo ás inúmeras batalhas da escrita. Em seus poemas, qualquer leitor mais atento poderá perceber as influências de Drummond, José Chagas, Manuel Bandeira, Nauro Machado, Cecília Meireles, Baudelaire e Augusto dos Anjos, entre tantos outros nomes da enorme constelação poética das letras mundiais. Porém irá enganar-se quem imaginar que a influência se transformou em mero pastiche ou em apropriação dissimulada de imagens, assuntos ou idéias. Não. De forma nenhuma. Rosemary Rego pode até respirar os ventos dos poetas acima citados, mas, ao expirar, bafeja, os leitores com suas próprias palavras, com seu próprio tino artístico e deixas suas digitais em cada verso. Ela tem consciência de que fazer poesias é uma tarefa difícil, uma verdadeira construção de algo que talvez nunca se concretize, afinal:
O cerne da palavra basta
para que em mim o estro não saia oco.
Apenas transforme em poema
A humanidade
E é essa incessante busca de transformar o Humano em palavras o diferencial dessa escritora que tem coragem de mostrar-se ora pensativa e filosófica, ora arrebatadora e sensual. Não importa o tema, o importante é que dentro de cada texto “a palavra, pulsa / grita / berra”, que o grito da palavra não seja apenas uma forma de enfeitar uma página em branco, mas sim que os “mistérios de alegorias a esconder-se / por trás do tempo” se transformem em sussurros que nos façam sonhar embalados com a melodia da “breve canção” de uma chuva caindo mansamente e celebrando “o coito que faz parir o ontem e o hoje”, mas também sirva para despertar em cada um a consciência de que a realidade pode ser apenas “a máscara de um sonho terçã”.
Rosemary busca em seus poemas muito mais que realizar um mero exercício de busca das melhores palavras para dar vida a uma imagem, ela busca, sim, “rasgar o verso ainda que a alma se canse dos vocábulos”. E consegue. Em cada um de seus textos o grito da Poesia pode ser ouvido, basta apurar os ouvidos, para ter a certeza de que cada poemas deste livro é,
a meta
linguagem
do ocaso
faca decepando
o sol
de final de tarde.
Só quem usa as lentes dos grandes poetas é capaz de pinçar da frieza de uma língua uma imagem que represente a essência da poesia. E Rosemary Rego parece ter conseguido umas lentes bem especiais... as de quem sabe que a poesia é mais visível no invisível da palavra, às vezes, não ditas.
Este texto foi publicado inicialmente como prefácio do livro O Ergástulo Gozo da Palavra, São Luís, 2004.
UMA VERDADEIRA PRISÃO DOMICILIAR
José Neres
(Correio do Estado, Campo Grande, 10.06.2017)
Nos últimos anos, ou pelo menos nos últimos meses, os noticiários têm comentado bastante sobre pessoas condenadas pela justiça a penas que deveriam ser cumpridas em regime fechado em uma penitenciária, mas que conseguiram o benefício do chamado regime semiaberto, em que o apenado pode trabalhar durante o dia, devendo voltar à noite para a cela; ou mesmo em prisão domiciliar, quando é possível a pessoa trabalhar no período diurno, mas deve passar as noites, os finais de semana e feriados em seus respectivos domicílios ou em locais determinados e conhecidos pelos agentes da Lei.
Essas notícias divulgadas cotidianamente em rádios, telejornais e nas inúmeras páginas da internet chocam as pessoas que, quase sempre, veem esses benefícios como um abrandamento de pena principal, ou uma quase premiação para quem cometeu delitos graves e que agora podem usufruir da presença de familiares e amigos muitas vezes em confortáveis casas, apartamentos ou mansões.
Mas o que poucas pessoas têm percebido é que, independentemente de haverem ou não cometido algum tipo de crime, muitos brasileiros, mesmo sem a necessidade de ordem judicial, também já vivem em regime de prisão domiciliar há bastante tempo, tudo por conta da crescente onda de violência que assola o País, por causa da catastrófica condição econômica do trabalhador brasileiro e também pelos avassaladores índices de desemprego. Três fatores nada desprezíveis e que implicam grandes impactos na vida das pessoas de todas as faixas de renda, do mais rico ao mais pobre, com as devidas proporções.
É impossível desprezar a influência das múltiplas violências nas práticas sociais cotidianas. As pessoas têm medo de transitar pelas ruas e, quando se aproxima o período da noite, voltam correndo para seus lares (os que têm o privilégio de terem um), trancam suas portas e janelas, enclausuram-se na sala e passam a ver mundo pelo olho mágico da tevê ou pelos aplicativos disponíveis na grande rede de computadores, assustando-se com os menores ruídos que venham do exterior. A cada nascer de dia, vem a sensação de haver sobrevivido a uma interminável guerra civil, mas também vem o medo das inseguranças que se escondem à luz do sol em todas as esquinas e cruzamentos.
A condição econômica é outro fator que limita a liberdade do indivíduo e faz com que toda a família se recolha à casa todas as noites, sem esperança de diversão ou pelo menos de poder aproveitar as belezas naturais da cidade ou do campo. A noite deixou de ser um momento de repouso para ser a esperança de recuperar o fôlego para os afazeres laborais do dia seguinte. O dinheiro investido em diversões noturnas a sós ou acompanhado passou a ser contabilizado como perdas pecuniárias no final de mais um mês de trabalho. É mais lucrativo recolher-se ao lar torcer para um novo dia raiar.
O trabalhador desempregado é outro que vive em prisão domiciliar. Depois de um dia inteiro em filas para cadastramento, ele sabe que deve voltar para casa e, muitas vezes com a barriga vazia, esperar pelo dia seguinte. Sua casa, à noite, torna-se não apenas um cárcere forçado para seu corpo, mas também uma prisão para seus sonhos de dias melhores.
Dessa forma, diferentemente dos presos de justiça, que têm a prisão domiciliar como um alento, com visitas constante e até mesmo um esquema paralelo de segurança, o trabalhador brasileiro que se vê diariamente obrigado a trancar-se dentro do próprio lar, sem direito a rondas periódicas das forças legais e nem mesmo à esperança de dias melhores virão, amargam a certeza de que vivem em uma verdadeira prisão domiciliar, sem consolo de algum dia conseguirem a liberdade.
TIMBUBA: A VIDA NO SHOPPING
José Neres
Uma das partes boas de festivais de cinema como o Guarnicê, realizado em São Luís do Maranhão e que este ano chegou a sua quadragésima edição, é a oportunidade que o público tem de entrar em contato com produções que não teriam espaço nos circuitos comerciais. Claro que ali, apesar da seleção, são projetados filmes de todos os matizes; dos ótimos àqueles que levam quem está na poltrona se perguntar: “o que que eu estou fazendo aqui?”. Mas, no cômputo geral, o saldo sempre é positivo, pois possibilita um mergulho no mundo das artes com a vantagem de o público poder entrar em contato direto com atores, diretores e produtores que lutam para levar cultura e diversão para todos os rincões do Brasil.
No sábado (10.06), durante a cerimônia de premiação, apesar das diversas gafes, da incredulidade do público diante de algumas situações constrangedoras, destacando-se como um dos pontos altos a belíssima apresentação do Coral de São João, foram apresentados os vencedores das mostras competitivas. Entre esses nomes estava o do jovem Andriolli Araújo, diretor e editor do curta-metragem Timbuba – A Vida no Shopping, que merecidamente recebeu o Prêmio Assembleia Legislativa do Maranhão Mauro Bezerra (Melhor documentário) e também de Melhor documentário maranhense.
O com duração de 00:11:37 (onze minutos e 37 segundos), a obra mostra a dureza da vida de pessoas que retiram seu sustento do lixão que dá nome ao filme. Os depoimentos são ilustrados com imagens do local, que ironicamente é chamado de Shopping, pois lá é possível encontrar tudo, desde gêneros alimentícios até eletrodomésticos, passando por roupas, brinquedos e outros produtos. Pelos vastos corredores do lixão, as pessoas transitam, dividindo espaço com os urubus, na busca pela sobrevivência.
O diretor soube mesclar as falas dos depoentes com trechos de situações cotidianas para quem trabalha no local, mas chocantes para quem não conhece aquela realidade. Muito mais que apenas uma exposição de situações, o curta-metragem traz também denúncias imiscuídas nas cenas, ora de forma sutil, ora de modo explícito. Andriolli Araújo e sua equipe foram também muito felizes na escolha do subtítulo – A Vida no Shopping, retirado da fala do principal entrevistado, e que traz uma fortíssima carga de ironia recheada com um tom de desabafo. Os frequentadores daquele lixão, assim como os de tantos outros espalhados pelo país, procuram ali não apenas produtos que possam ser reciclados ou reaproveitados, buscam também, por mais absurdo que pareça à primeira vista, um pouco de dignidade para levarem uma vida com menos necessidade, pois nem sempre podem exercer as profissões que aprenderam, mas todos os dias devem sobreviver seja em uma selva pedra, seja em uma montanha de lixo.
O filme é bom, com ótimas tomadas e com articulações interessantes entre começo meio e fim. O texto acaba de alguma forma dialogando com Lixo, Lixado (de Mia Couto), O Bicho (de Manuel Bandeira) e com Quarto de Despejo (de Maria Carolina de Jesus) e todas essas obras de arte podem servir para humanizar nosso olhar com relação a essas pessoas que se tornam invisível a nossos olhares que preferem passear por outros shoppings.
FICHA TÉCNICA: Andriolli Araújo (Direção, direção de fotográfica, montagem e edição; Marcelo Pinheiro (trilha sonora original); Karla Karoline, Lilian Avelar e Alanna Assunção (Roteiro).
ANA JANSEN EM ANIMAÇÃO
José Neres
Ana Jansen é a mais famosa matriarca da cultura e da história do Maranhão. Sua vida e suas peripécias já serviram de mote para diversos estudos de cunho historiográfico e já inspirou diversos artista na produção de peças trabalho, como Ana do Maranhão, de Lenita Estrela de Sá; Quem tem Medo de Ana Jansen, de Wilson Marques; Ana Jansen, de Rita Ribeiro; Ana Jansen em Cordel, de Raimunda Frazão e Ana Jansen, “Rainha do Maranhão”, de Paulo de Paulo de Tarso, o Poeta de Tauá, entre outros. Além de aparecer como personagens em outros livros, como é o caso O Entrevistador de Lendas, de José Ewerton Neto e de Os Tambores de São Luís, de Josué Montello, romance no qual exerce importante papel.
Essa personagem mítica e histórica ao mesmo tempo povoa o imaginário do povo maranhense e suas pitorescas aventuras e articulações políticas passaram de geração para geração sempre com muitos exageros e uma boa dose de fatalismo e de humor negro.
Agora, em 2017, esse arsenal de produções sobre a matriarca maranhense ganha um reforço para a divulgação da figura de Ana Jansen junto ao público mais jovem, podendo servir também para atingir pessoas de lugares mais distantes e que talvez nem mesmo saibam quem é a emblemática personagem que há décadas vem influenciando a história paralela e as artes no Maranhão. Trata-se do curta-metragem A Pequena História da Lenda de Ana Jansen, uma animação produzida sob a direção de Beto Nicácio, com roteiro de Iramir Araújo, dois artistas experientes que há muito tempo vêm contribuído para a divulgação da história do Maranhão através de quadrinhos e de animações.
O enredo é bastante simples, mas serve para compor o cenário necessário à composição da narrativa. Ao passar com seu avô por perto de uma das casas de Ana Jansen, um garoto demonstra ter medo da lendária mulher que ali morou. O experiente senhor aproveita para mostrar para seu neto algumas das muitas histórias sobre a famosa matriarca, mostrando que nem tudo o que contam sobre Ana Jansen é negativo. Como a animação é bastante curta, só deu tempo de falar de alguns famosos episódios, como, por exemplo o da escrava que foi alforriada e o famoso caso dos penicos cheios de fezes
A animação não tem a inda agilidade de um desenho animado, em alguns momentos a cenas são estáticas com a utilização da técnica de animar apenas uma parte específica das personagens, braços e boca, por exemplo. Porém, longe e ser um defeito, isso torna o curta-metragem ainda mais autoral e demonstra que os autores sabem trabalhar com os recursos de que dispõem e que conseguem tirar das dificuldades soluções criativas.
Mesmo tendo como público-alvo os jovens que começam a se interessar pelas histórias e estórias de nossa terra, o filme pode ser aproveitado também por quem tenha interesse em conhecer uma versão sobre o mito de Ana Jansen em uma linguagem diferente das demais. O texto é claro e didático, levando o leitor a entrar em contato com não apenas com a lenda, mas também com a possibilidade de fazer releituras e de fazer uma reflexão acerca da figura da matriarca maranhense.
O curta-metragem foi exibido na mostra competitiva do 40º Festival Guarnicê de Cinema em São Luís do Maranhão, neste mês de junho de 2017 e vem tendo boa receptividade por parte do público que acompanha o evento, mas está disponível também na internet, conforme pode ser visto abaixo.
REDENÇÃO
José Neres
Professor, escritor e Membro da AML
Fonte da imagem: internet
Quem interage com as redes sociais ou acompanha os noticiários em rádio, televisão e/ou jornais já deve ter lido ou ouvido falar do curta-metragem Redenção, dirigido em parceria por Joaquim Haickel e Neville d’Almeida, e que vem sendo laureado em diversos festivais internacionais.
Na página oficial de divulgação do filme, é possível seguir as indicações e os prêmios recebidos em festivais bastante concorridos e com indubitável grau de respeitabilidade entre os amantes e os profissionais da sétima arte, com possibilidade de que outros prêmios venham a se juntar aos já conquistados, pois ainda está concorrendo em diversos outros concursos.
Como a quase totalidade da população maranhense ainda não teve acesso ao filme, algumas pessoas sempre se perguntam se Redenção é realmente um bom filme. Como fui um dos poucos privilegiados a ver o filme posso deixar aqui minhas impressões, como faço sempre com relação às artes produzidas em nosso Maranhão.
Primeiro esclareço como consegui ver o filme. Em abril deste ano, foi realizado o I Simpósio Maranhense de Cinema, promovido pela Escola de Cinema do Maranhão. Entre os palestrantes, estava o experiente cineasta Joaquim Haickel, que depois, de uma breve conversa sobre sua produção cinematográfica, brindou o público com uma exibição do filme. Depois da projeção, surgiram alguns comentários, dúvidas, perguntas e observações.
O filme, segundo foi dito e divulgado, foi rodado em poucos dias e surgiu como uma espécie de exercícios de interatividade entre os envolvidos no processo. Quase que às pressas o roteiro original foi readaptado, as locações foram definidas, as personagens foram distribuídas, o figurino foi providenciado e as filmagens começaram. O resultado pode ser medido não apenas pela quantidade de prêmios conquistados como pela reação da cerca de uma centena de pessoas que estava no Simpósio.
É possível notar durante a exibição que o filme é uma mescla do talento dos dois diretores que que têm estilos bastante diferentes, mas que conseguiram uma espécie de desconcertante equilíbrio estilístico. De um lado estão a leveza e as sutilezas de Joaquim Haickel, que remetem à suavidade de Pelo Ouvido. Contrapondo-se a isso, temos a força narrativa e os impactos visuais que são marcas constantes na produção de Neville D’Almeida, como pode ser visto em Navalha na Carne. Em Redenção, essa polarização se torna bastante visível, principalmente na construção da personagem central, muito bem interpretada pela atriz Daya Ananias.
O Enredo em si não traz grandes novidades e em alguns pontos pode até ser previsível, mas o amálgama entre a aparente ingenuidade de uma moça que tenta ganhar a vida vendendo seu corpo em um prostíbulo e a frieza calculada de suas ações merece um destaque especial. O filme é produzido em cortes esquemáticos que valorizam a passagem do tempo, freando e acelerando as ações de acordo com as necessidades do texto. A trilha sonora acompanha o drama e desfoca o centro das atenções para uma espécie de sofrimento que não é o que está visível na tela, mas sim o que está guardado na história da protagonista, sendo que suas motivações só ficam claras para quem estiver atento ao desenrolar das cenas. Uma breve distração e tudo pode estar perdido, fazendo parecer que algumas cenas não têm sentido lógico. Mas isso é culpa de quem teve a ousadia de cochilar ou se distrair durante a exibição.
Aos poucos o ar de mistério vai se descortinando e a inocência ganha ares de barbárie, com o grotesco de um submundo que nem sempre queremos ver ganhando intensidade e sufocando tanto a plateia quanto a densidade das ações anteriores. Depois de atingir o clímax narrativo, o filme caminha para um desfecho que lembra seu início, mas com a certeza de que aquele microuniverso deve agora ser visto de outro modo – bem mais cruel do que antes.
Claro que um filme produzido em um intervalo de tempo tão curto tem que apresenta falhas, algumas são quase imperceptíveis para quem está embalado pela narrativa. Mas, no cômputo geral, Redenção é um filme forte e denso e que merece todos os prêmios recebidos, estando de parabéns tantos os diretores quanto a produção e os atores.
Esperemos que em breve o filme esteja disponível para que todos possam tirar suas próprias conclusões.
APRENDENDO COM SHARLENE SERRA
José Neres
(Professor e membro da Academia Maranhense de Letras)
Aproximando-se o final da segunda década do século XXI, já é possível chegar-se à conclusão de que o subgênero literário que mais se desenvolveu no Maranhão, seja do ponto de vista quantitativo quanto do qualitativo, foi o voltado para o público infanto-juvenil.
Nos últimos anos, uma boa leva de nomes – como, por exemplo, Cléo Rolim (Miguel na Terra das Cores/ O Gato que Queria ser Sapo), Diego Freire (Bumba, Nosso Boi), Natinho Costa Fênix (As Aventuras de uma gotinha D’água/ O Gatinho que não Sabia Miar) , Inês Maciel (A Menina dos Olhos de Peteca), Neurivan Sousa (O Pequeno Poeta), Assenção Lopes Pessoa (José e as Três Mosqueteiras/ A Princesa Sara e o Sapo), Márcio Almeida e Francis Cavalcanti (O Livro e o Cometa), dentre outros – se juntaram aos de autores já consagrados nesse gênero literário e começaram a traçar um novo cenário no ramo das letras maranhenses.
Outro importante destaque nesse terreno de obras destinadas ao público infanto-juvenil é o da pedagoga, designer e escritora Sharlene Serra, que vem produzindo uma série de obras voltadas para a inclusão de pessoas com algum tipo de necessidade especial, não apenas no mundo escolar, mas também nos demais campos da sociedade. Seus livros não são destinados apenas para os estudantes, mas também para pais, professores, gestores de escolas, políticos e para todos os interessados na temática da inclusão como direito de todo cidadão, não importando a idade ou a classe social.
Os quatros livros da Coleção Incluir publicados até agora não começam com o tradicional “era uma vez”, mas sim um denunciativo “não era uma vez/ eram várias as vezes...”, deixando claro que a temática a ser tratada não é algo que ocorre raramente, mas sim que se tratam de fatos recorrentes na sociedade. Após esse início padronizado, a escritora passa a mostrar o cotidiano de meninos e meninas que enfrentam problemas por conta de algumas diferenças físicas e/ou comportamentais.
Em “Caminhando com Paulo” é discutido o problema da acessibilidade para quem tem alguma dificuldade de mobilidade. Em “Aprendendo com Biel”, o leitor entra em contato com um garoto que tem Síndrome de Down, o que leva muitas pessoas a afastar-se dele. A protagonista de “Olhando com Ritinha” e utiliza o Braille para ler e escrever. Já em “Ouvindo com Vitória” é a deficiência auditiva o foco de discussão, com a Língua Brasileira de Sinais recebendo um destaque especial.
Muito mais do que apenas discutir as necessidades especiais acima citadas, Sharlene Serra, em seus livros, aponta caminhos que podem levar tais crianças a um processo de inclusão social e educacional. Além da história de ficção, no final do livro, o leitor interessado poderá encontrar também as bases legais para discutir os assuntos com mais propriedade, além de atividades lúdicas que despertam o sentimento de empatia, fazendo com que nos coloquemos no lugar de quem convive com as diferenças trabalhadas em cada volume.
Outro ponto a ser destacado nesses livros é o protagonismo infanto-juvenil, pois não parte dos adultos a iniciativa de lutar pela inclusão, mas sim de pessoas da mesma faixa etária dos excluídos. Isso faz com que os leitores se identifiquem tanto com as personagens que apresentam alguma necessidade especial, quanto com os que apresentam os diversos tipos de preconceitos ou com os que conseguem pensar e agir além dos estereótipos.
Os livros da Coleção Incluir não apenas divertem, mas também informam e podem ajudar a inserir jovens e adultos em uma ampla discussão sobre assuntos que até bem pouco tempo eram tidos como tabus em casa, na escola e em grande parte da sociedade.
O TEATRO SOCIAL DE SAMIRA FONSECA
José Neres
(Professor e membro da Academia Maranhense de Letras)
Ridendo castigat mores. Essa máxima latina foi usada por teatrólogos como Gil Vicente, Molière e Artur Azevedo como forma de demonstrar que os costumes de um povo ou de uma época podem ser corrigidos pelo riso, pelo sarcasmo, pela ironia, desde que isso seja feito com arte e estilo. A literatura pode servir para despertar nas pessoas tanto o senso estético, como a consciência do estar no mundo e de perceber-se como parte integrante da imensa engrenagem social. Um bom livro é sempre um fiel companheiro que nos ensina e nos alerta, mostrando-nos caminhos alternativos para atingir nossos objetivos.
Foi possivelmente partindo da concepção de que uma obra de arte não pode ficar restrita apenas aos conceitos estéticos, mas que também pode apresentar fatores sociais, que a professora e escritora itapecuruense Samira Fonseca selecionou três de suas peças teatrais com temas confluentes e as enfeixou em seu novo livro intitulado Maria Passa na Frente, publicado em 2016.
Composto por textos curtos e de fácil assimilação, o livro traz em seu bojo o olhar crítico da autora com relação a diversos aspectos sociológicos que poderiam até passar despercebidos por quem não está preocupado com as mazelas sociais, mas que chamam a atenção das pessoas atentas à vida moderna e a problemas como violência, corrupção, fraudes, etc.
Partindo de situações cotidianas, mas com personagens pouco convencionais, a criativa autora traz em sua primeira peça uma reunião entre alguns santos e seres celestiais da Igreja Católica a fim de discutirem como amenizar os problemas da falta de segurança em Itapecuru. De forma irônica, Samira Fonseca mostra que até os santos estão com medo de transitar pelas ruas e praças do município e aproveita o texto para mapear as áreas mais perigosas da cidade. À primeira vista, a peça é apenas uma história engraçada com uma temática atual ambientada em um cenário inusitado, mas, na prática, dos risos arrancados durante a leitura do texto (ou da representação da peça) surgem diversas reflexões acerca de situação caótica pela qual todos nós passamos.
No segundo texto, que serve também como título ao volume, um dos focos centrais é o eterno conflito entre o bem e o mal. No meio de uma conversa entre anjos e santos aparece a figura de Satanás tentando impor suas ideias, mas, ao mesmo tempo, mostrando verdades que nem sempre querem ser vistas ou ouvidas. A opção da autora de seguir as linhas conceituais amplamente utilizadas por autores como Juan del Encina, Gil Vicente e Ariano Suassuna resultou em um texto ágil e carregado de ironias nem sempre tão sutis. Novamente os problemas sociais enfrentados pelos moradores de Itapecuru ganham força e projetam uma aura sociologia que paira acima da aparente abordagem religiosa sugerida pelo título. Fica então a certeza de que o trabalho de Satanás vem sendo muito facilitado pela ação dos homens que se dizem tementes a Deus.
Depois de investir em dois autos – peças com caráter religioso – a escritora decide fechar o livro com uma farsa – peça que explora o lado mundano da vida. Mesmo mantendo a unidade de trazer todos os textos tratando de assuntos relacionados à Igreja Católica, mantendo como locus a cidade de Itapecuru, nessa última peça, a escritora retoma o rimo de mistério que foi a tônica de seu livro de estreia. Dessa feita, é o repentino desaparecimento do padre da cidade que serve como ponto de partida para o desenrolar da trama. Dois estudantes, uma professora e um taxista acabam se interessando pelo caso e as pistas que podem levar à solução do mistério começam a ser destrinçadas. O protagonismo juvenil, a hipocrisia e a desfaçatez são três dos elementos essenciais para a construção do enredo dessa peça. O mistério em si não interessa muito dentro do contexto abordado, porém, por traz da breve investigação que norteia o texto, a autora coloca toda uma gama de críticas sociais e de observação acerca de membros de instituições que nem sempre seguem as normas que prometeram cumprir. E são essas críticas ácidas que tornam a obra mais interessante.
Interessante notar que Itapecuru é apenas a localidade escolhida pela autora para situar suas histórias e suas críticas, mas que, ao substituir-se o nome do município pelo de qualquer outra cidade e adaptando-se os logradouros citados aos nomes de outras ruas e praças das muitas localidades de nosso imenso Brasil, a situação seria a mesma, ou seja, os problemas são os mesmos, independentemente dos lugares em que estejamos. E a arte pode servir para dar maior visibilidade a problemas que nem sempre percebemos, conforme já defendeu Paul Klee, um dos grandes expoentes da arte universal.
Ridendo Castiga Mores. Durante todas as três peças que compõem o livro, Samira da Fonseca diverte e adverte os leitores, sem fazer esforço de tentar convertê-los a qualquer uma das ideologias religiosas que permeiam o texto. Mas as diversões não são aleatórias e/ou impensadas. Fazem, sim, parte de uma tentativa de divertir ensinando e de ensinar divertindo. A cada página, o leitor acaba percebendo que faz parte de um sistema e que é necessário tomar consciência dos perigos que nos rondam em cada esquina. E se nem os santos se sentem protegidos, o que se dirá de nós, meros mortais?
ISAAC DE OLIVEIRA E AS ARARAS AZUIS
José Neres
(O Estado do Maranhão, 20/02/2017)
O Brasil é um país gigantesco, com características tão diversas, que muitas vezes se multiplica (ou de divide), dando origem a uma quantidade intermináveis de “Brasis” que nem sempre se comunicam e que quase sempre desconhecem os valores e talentos produzidos fora dos limites do olhar de cada uma dessas infinitas partes.
Assim, excluindo-se os casos maciçamente divulgados pela mídia de massa, os artistas, as produções científicas e os caracteres culturais de uma região são totalmente estranhos aos moradores dos outros rincões do país. Esse é o caso, por exemplo, do artista plástico Isaac de Oliveira e do Projeto Arara Azul, cujas ressonâncias talvez sejam mais visíveis, audíveis e sentidas no exterior que nos outros estados da federação.
Nascido na Bahia, mas radicado há mais três décadas em Campo Grande (MS), depois de uma passagem em São Paulo, o artista plástico Isaac de Oliveira é um dos mais talentosos pintores das artes contemporâneas brasileiras. Dono de um estilo que mescla a suavidade de traços milimetricamente calculados com densidade de cores fortes e contrastantes, esse artista parece ter encontrado na região pantaneira a paisagem ideal para transportar às telas a exuberância de uma biodiversidade ímpar capaz de despertar múltiplas sensações nas pessoas.
Apesar de se dedicar a vários motivos e temas, é na estilização das formas da natureza que esse poeta da tinta e dos pinceis melhor se realiza. São antológicas suas telas reproduzindo a beleza das multicoloridas floradas de ipês, assim como também são de extremo bom gosto o delineamento dos detalhes de flores, os animais silvestres e suas incursões pela nudez artística que sugerem as sutilezas das formas femininas, sem as apelações de um erotismo vazio.
A fauna do Pantanal é outra das preferências desse artista. Dando asas à imaginação, mas sem cair na tentação de pecar pelo excesso, ele eterniza em suas telas as formas e as cores tanto de peixes quanto de aves, valorizando uma espécie de movimento estático do objeto observado, para despertar em quem veja os quadros (muitos deles disponíveis na internet) a sensação de vida, não de algo morto, parado, inerte, ou em extinção.
Deixando a arte e partindo para o mundo das ciências, foi a partir da constatação de que as araras azuis eram mais que belas aves raras, mas sim seres em processo de extinção, que a professora e pesquisadora Neiva Guedes decidiu dedicar parte significativa de seus esforços e estudos para preservar essa espécie, dando origem ao Projeto Arara Azul e, posteriormente, ao Instituto Arara Azul, ambos respeitados mundialmente e reconhecidos como exemplos de integração entre o mundo acadêmico e a prática social em prol de um mundo melhor.
Com sede em Mato Grosso do Sul, desse projeto não nasceram apenas artigos, dissertações e teses, pois, a partir da intervenção direta de sua idealizadora e de sua pequena equipe de colaboradores, muitas aves foram salvas, muitos ninhos foram protegidos e muitos filhotes puderam ensaiar seus primeiros voos rumo à preservação da espécie. Ou seja, nunca foi apenas uma questão de cumprir formalidades acadêmicas. A vida sempre foi o foco principal desse projeto, que embora tenha nascido voltado para uma ave em particular, preocupa-se também com a preservação de outros pássaros. Em troca, a ciência brasileira também pôde alçar altos voos, alcançando reconhecimento e colocando no cenário mundial pesquisadores que fazem a diferença diante de um mundo em crise.
Isaac de Oliveira e o Projeto Arara Azul são dois claros exemplos de que o gigante Brasil é muito mais que o somatório dos vários “Brasis” que mal se conhecem.
Espaço Isaac de Oliveira
Projeto Arara Azul
SIMPLESMENTE GULLAR
José Neres
No início de 1998, eu era aluno do curso de pós-graduação em Literatura Brasileira da PUC-MG quando resolvi enviar meu primeiro artigo para ser publicado no Cadernos de Opinião de O Estado do Maranhão. Era um texto de pouco mais de vinte linhas, conforme pedia a linha editorial do jornal naquela época. Para a minha surpresa, no dia 17 de janeiro, o artigo foi publicado. O título era “Acerca do Poema Sujo”. Estreei falando de Gullar.
De lá para cá, publiquei centenas de textos em diversos jornais, revistas e livros, sempre revisitando a obra do grande poeta, tanto em artigos quanto em palestras e aulas. Sempre homenageei Gullar em vida. Não esperei que ele se fosse para comentar sua obra. Até que...
Domingo. 04 de dezembro de 2016. Ao ligar a TV, o apresentador do noticiário esportivo faz uma pausa nas notícias sobre a tragédia que se abateu sobre o time do Chapecoense para dar a notícia de que havia acabado de falecer o poeta maranhense Ferreira Gullar, um dos mais importantes nomes das letras brasileiras da segunda metade do século XX até nossos dias. Imediatamente, as redes sociais foram inundadas de homenagens ao polêmico escritor que deixou para a eternidade uma produção intelectual que o fez reconhecido em todo o mundo como poeta, tradutor, crítico de arte, roteirista, cineasta, compositor, contista e cronista.
Ao nascer, o poeta recebeu o singelo nome de José Ribamar Ferreira, mas logo no início de sua carreira literária, fazendo uma junção estilizada dos sobrenomes das famílias de seu pai e de sua mãe, passou a assinar seus trabalhos com o sonoro nome de Ferreira Gullar. Com o tempo, no entanto, nem mesmo as pessoas precisavam recorrer ao nome completo para identificar o estilo e a força poética de um homem que se construiu de versos, se vestiu de poesia e que encontrou nas palavras uma forma de eternizar-se em forma de livros, sons e silêncios. Gullar, simplesmente Gullar virou sinônimo de Poesia.
Homem sempre ligado às inovações artísticas de seu tempo, mas com o olhar voltado para os limites do que ainda poderia surgir, Gullar se envolveu em diversas polêmicas com os mais diversos autores e sobre temas que nem sempre foram bem compreendidos pelos envolvidos nas contendas ou pelos observadores da cultura em geral. Inquieto, participou ativamente de movimentos como Concretismo e Neoconcretismo, publicou literatura de cordel, ganhou inúmeros prêmios, concorreu ao Nobel de Literatura, foi contestado por alguns e amado por muitos.
Mas dificilmente alguém poderá negar as qualidades literárias de Ferreira, tanto em prosa quanto em verso. Sua poesia tem o dom tanto de agradar aos intelectuais quanto de tocar a alma das pessoas que poderiam ser consideradas simples. Nela é possível encontrar a suavidade de “cantiga para não morrer” e a densidade social de “A Bomba Suja”; o conflito existencial de “Traduzir-se” e as diversas homenagens a escritores como Clarice Lispector e Mário de Andrade.
Seu longo “Poema Sujo”, que saiu das entranhas da memória e atingiu a sonoridade de um grito de dor, esperança e saudade, foi considerado por alguns críticos como uma espécie de nova Canção do Exílio. Nesse livro, o teor político se mesclou aos aspectos mnemônicos, resgatando um país e uma cidade que se escondem dentro de quem só se podia se apegar às palavras para resgatar sua própria história.
Ao longo de décadas, muitos casais se apaixonaram ao som de “Borbulhas de Amor”, passaram horas vendo as aventuras destrinçadas em “Carga Pesada”, mas também tiveram a chance de discutir arte e política a partir de suas inflamadas crônicas reproduzidas em diversos jornais. Gullar, por seu trabalho, fez-se verbo, fez-se verso, fez-se música, fez-se poesia... E sua história o fará eterno.
Meu textos sobre Ferreira Gullar
- Acerca do Poema Sujo (O Estado do Maranhão, 1998)
- As Muitas Vozes de Gullar (O Estado do Maranhão, 1999)
- Gullar e o Cordel Social (Revista DeRepente, 1999)
- Um Poema em Versos Sujos (No livro O Discurso e as Ideias, 2002)
- Gullar no Olhar de Quiroga (O Estado do Maranhão, 2010)
- Poema Sujo e Cidade Limpa - com Susane Martins (Jornal Pequeno, 2013)
- Ferreira Gullar em Ritmo de Cordel (Conhecimento Prático Literatura, 2015)
- Dor e Engajamento Social (No livro Na Tábua de Papel, 2010)
- Dor e engajamento Social (No livro Na Trilha das Palavras, 2015)
- Poesofia: Reflexões e Digressões sobra a poesia maranhense (no livro Trechos de um Diálogo demorado, 2016)
MEIO AMBIENTE EM SUAVES CRÔNICAS
José Neres
(Publicado em O Estado do Maranhão, 16 de novembro de 2016)
Quando em 1977, foi firmada a Declaração de Tbilisi, ficou estabelecido que “a Educação Ambiental deve abranger pessoas de todas as idades e de todos os níveis, no âmbito formal e não formal”, ou seja, essa declaração internacional, deixa claro que todas as pessoas são, de alguma forma, responsáveis pela preservação do meio ambiente e pela divulgação de ideias que possam ajudar a melhorar a vida na Terra.
Hoje, cerca de quatro décadas depois que a citada Declaração foi assinada, mesmo com poucas pessoas atentando para o fato, o planeta Terra está agonizado e, em seu lento sofrimento, envia inúmeros pedidos de socorro para que o Homem deixe de maltratar o ecossistema e passe a dar mais atenção aos sinais de degeneração que poderão levar à extinção de diversas espécies, inclusive da humana, em pouco tempo.
Devastações, uso inadequado dos recursos hídricos, incêndios em florestas, poluição e descarte impróprio de resíduos sólidos na natureza tornaram-se tão corriqueiros nas últimas décadas que deixaram de ser notícia, tornando-se partes essenciais da chamada vida moderna. Tudo ficou tão normal que, às vezes, temos que apelar para a arte a fim de perceber o que cada vez mais se torna invisível aos olhos, talvez pelo excesso de visibilidade.
Diversas são as formas pelas quais podem ser divulgadas as ideias de uma Educação Ambiental que busque preservar a vida no planeta. A literatura é um desses instrumentos que podem ser utilizados para solidificar ou mesmo despertar a consciência ambiental nas pessoas. E é esse o interesse do poeta, teatrólogo e prosador Ivan Sarney em seu mais recente livro, intitulado O Congresso das Garças (AML, 2016, 318 páginas).
O livro é composto por sessenta crônicas que têm como foco central a Natureza em suas diversas nuances, sem descuidar de um estilo poético, mas que não deixa de ser contundente ao chamar atenção para diversos aspectos da degradação da Natureza patrocinada pela própria sociedade, que, na prática, depende dos recursos naturais para sobreviver e, contraditoriamente, destrói a cada dia sua principal fonte de vida.
Como todo bom cronista, Ivan Sarney aproveita situações cotidianas para, a partir delas, adentrar à verdadeira temática desejada. Um passeio pela Lagoa da Jansen, uma borboleta amarela que passa diante dos olhos, uma notícia de televisão, um pregoeiro que passa anunciando seus produtos ou até mesmo uma gota d’água na vidraça da janela... tudo pode servir de mote para o prosador desenvolver suas ideias sobre as relações nem sempre harmônicas entre o homem e o meio ambiente.
As crônicas de O Congresso das Garças são leves, bem escritas e podem servir como ponto de partida para discussões a respeito de diversas questões ambientais como as influências antrópicas no ecossistema, o aumento da temperatura, preservação ambiental, comportamentos dos animais e muitos outros. Todas as temáticas do livro encontram-se interligadas pela preocupação com o futuro do homem na face da Terra. A busca de alternativas viáveis para um desenvolvimento sustentável parece ter sido a força motriz que coordenou a seleção de textos para a composição do livro.
A cada crônica, o leitor pode perceber que, embora o ser humano seja importante, ele não pode ser visto como o único elemento vital da cadeia ecossistêmica que norteia todas as formas de existência. Com esse livro, Ivan Sarney presta uma importante contribuição para todas aquelas pessoas que se preocupam com o presente pensando também no futuro. Afinal de contas, para que tenhamos um amanhã, é preciso proteger o meio ambiente contra nós mesmos.
A Geometria do Lúdico
José Neres
Dizem que no Maranhão todo mundo se considera, pelo menos em alguns momentos, poeta. Anualmente, inúmeras obras são escritas e diversas delas conseguem sair da gaveta e alçam à condição de livro impresso. São poucas, porém, as que conseguem atingir os status de trabalho de boa ou pelo menos razoável qualidade literária. Há casos em que apenas o autor e seus familiares conseguem ver alguma tessitura poética naquelas páginas encadernadas...
Há casos, contudo, em que o autor realmente merece ser chamado de poeta e consegue transpor para o papel suas ideias, seus sentimentos e suas impressões sobre o mundo em forma de versos bem elaborados e com boas soluções artísticas, fazendo com que o leitor mais exigente perceba que naquela página não há apenas um amontoado de palavras, mas sim um caminho sedimentado para as emoções poéticas.
Entre esses escritores que costumam sair da mera construção em série de poemas e conseguem atingir a esfera da poesia está Weliton Carvalho, autor de "Travessia sem Fim", "Descobrimento do Explícito", "Sustos do Silêncio", "Tempo em Conserva" e "Geometria o Lúdico", um alentado volume com mais de 600 páginas e que reúne, além dos três últimos livros acima citados, trazendo ainda outros trabalhos até então inéditos: "A Poesia Sorrindo", "Sinfonia da Solidão" e "Escandalosa e Lírica".
Dono de excelente dicção poética, Weliton Carvalho é capaz de transitar com a mesma desenvoltura por temas diversos como engajamento social, erotismo, lirismo e metalinguagem, por exemplo. No entanto, essa diversidade de temas não faz com que o poeta pareça superficial em suas abordagens, pois o trabalho poético-linguístico por ele perpetrado vai além de forçar as palavras em um contexto frasal. Weliton Carvalho em seus versos procura sempre conter a verbosidade sem comprometer a construção das imagens poéticas e sem apelar para construções esdrúxulas que apenas sirvam para chamar chocar o leitor, mas sem conteúdo aproveitável.
Por trazer um apanhado geral da produção do autor em poesia até 2008, "Geometria do Lúdico" (Sotaque Norte: 670 páginas) é o livro mais recomendado para quem deseje entrar em contato com o conjunto da obra de Weliton Carvalho. Nesse livro, o leitor poderá encontrar desde os versos de caráter mais social de alguns poemas até a explosão de sensualidade e erotismo de um livro inteiro dedicado à relação física-amorosa-carnal entre dos seres que ora se mistura, ora se separam, mas que sempre se completam.
Mas o ponto alto do livro é "Poesia Sorrindo", obra na qual o poeta maranhense pasticha e ao mesmo tempo presta grande homenagem a Mário Quintana. Em dezenas de versos sintéticos, Carvalho cria flashes da realidade interior e/ou exterior do ser humano, discutindo de forma bem humorada situações aparentemente comuns, mas que poderiam passar despercebidas por olhos menos atentos. Em versos curtos e carregados de ironia e de suavidade, o poeta trabalha o cotidiano. O celular, por exemplo, hoje um amigo inseparável de muitas pessoas, é redefinido como sendo "um chato de algibeira" (p. 331). Atento a tudo o que o rodeia, no poema Pequena Tragédia, o poeta chama a atenção para algo que se repete dia após dia: "O professor recitando Gonçalves Dias/ e os alunos preocupados com a provinha de literatura" (p. 347). Às vezes, o tom de provocação norteia o poema, como ocorre em Fogo Amigo: "Os homens não reparariam na celulite não fossem tuas amigas" (p. 362).
De modo geral, se o livro "Geometria do Lúdico" pode até assustar os pseudo-leitores pelo número de páginas, porém bastará o verdadeiro amante da boa poesia correr os olhos pelas primeiras páginas ou mesmo abrir o livro em qualquer poema para se sentir acolhido pela essência dos verso de um homem que realmente pode ser chamado de poeta.
JOMAR MORAES: MESTRE DE GERAÇÕES
José Neres
(Professor, escritor e membro da Academia maranhense de Letras)
Neste domingo, 14 de agosto de 2016, mais uma vez o Maranhão se veste de luto pelo passamento de um de seus mais ilustres filhos: faleceu Jomar Moraes, um dos maiores conhecedores e pesquisadores das letras e da cultura maranhense.
Nascido na cidade de Guimarães, no dia 06 de maio de 1940, desde a juventude, Jomar Moraes se viu inclinado pelas palavras escritas. Mesmo entrando para o Exército, instituição na qual chegou ao posto de sargento, ele logo percebeu que sua paixão era o mundo das pesquisas e que havia nas estantes das bibliotecas todo um universo a ser explorado por alguém com habilidade e vontade de desbravar por páginas nunca dantes navegadas.
Dono de uma memória prodigiosa, de um espírito crítico bastante lúcido e de uma inquietação típica de quem sempre se incomodou com as lacunas existentes na historiografia literária maranhense, ele tomou para si a responsabilidade de tentar sistematizar tais estudos. Dessa forma surgiram livros importantíssimos, mas infelizmente esgotados, como Apontamentos da Literatura Maranhense, Ana Jansen: a Rainha do Maranhão, Sousândrade, Vida e obra de Antônio Lobo, Bibliografia Crítica da Literatura Maranhense e Graça Aranha, entre outros títulos, além de organizar diversas edições dos perfis acadêmicos e da Revista da Academia Maranhense de Letras, de onde era há quase cinco décadas ocupante da cadeira 10.
E foi à AML que Jomar Moraes também dedicou grande parte de suas energias de pesquisador, editando e publicando livros raros para que as novas gerações tivessem acesso a textos que poderiam se perder com o tempo e com a falta de conservação. Mesmo com a saúde abalada, sempre que podia, ela participava dos eventos e das reuniões, discutindo os temas e dando sugestões. De alguma forma, a história de Jomar Moraes e a da Academia se fundiam e a ele a centenária Instituição sempre deverá muito. Sempre que algum membro da Casa de Antônio Lobo tinha uma dúvida a respeito de alguma obra, momento histórico ou autor, era a ele que recorria.
Mestre Moraes viveu cercado de livros e sua biblioteca particular beirava a marca de 50 mil exemplares, todos organizados e devidamente tratados. Era em sua residência que ele recebia inúmeros interessados em cultura e em pesquisar diversos aspectos tanto da literatura local quanto da universal. Ali, ele indicava caminhos que poderiam ser seguidos e depois continuava suas leituras e sua constante tarefa de escrever.
Jomar foi também, durante décadas, um cronista dedicado a esmiuçar a cultura letrada do Maranhão, contribuindo para a divulgação de nossos valores literários e às vezes, levantando algumas polêmicas ou trazendo informações de difícil acesso para quem não tivesse tanta prática de leitura e de busca em livros diversos. Suas crônicas em O Estado do Maranhão eram lidas com atenção por quem queria mergulhar nos detalhes e efemérides da vida literária de nosso Estado.
Em termos de sistematização de estudos, mesmo sem estar amparado pelas modernas metodologias, pode-se dizer sem exageros que Jomar Moraes é para a literatura o equivalente a que Mário Martins Meireles é para os estudos historiográficos. A obra de ambos pode até ser contestada por quem se preocupe apenas com as técnicas, mas eles foram pioneiros em um momento no qual ainda quase nada havia em termos de estudos aprofundados. Ambos deixaram suas marcas para a posteridade.
Nossos agradecimentos ao Mestre Jomar, um homem que honrou sua terra dando o melhor de si e que deixou lições que sempre poderão ser consultadas e que ainda guiarão muitos passos. Sua obra é eterna!
(O Estado do Maranhão, 16 de agosto de 2016)
ZUMBIS ON-LINE
José Neres
(Professor, escritor e membro da Academia Maranhense de Letras)
O cenário pode ser qualquer um: shopping, praça, escola, faculdade, restaurante ou mesmo um lar... As personagens podem ser crianças, adolescentes, adultos ou idosos. O enredo será, com poucas modificações, o mesmo.
Diversas pessoas, de idades variadas, estão em um mesmo ambiente. Silêncio total. Até mesmo os sons externos parecem que não existem. As pessoas se sentam, levantam-se, andam de um lado para o outro desviando-se dos obstáculos de forma automática, sem levantar a cabeça. Comem e bebem sem atentarem para o que consomem. Voltam a andar, sentam-se, levantam-se. As cabeças estão baixas e os olhos sempre fixos em um objeto reluzente que trazem nas mãos, como se fossem extensão de seus corpos.
As linhas acima poderiam servir como uma espécie de storyline para roteiro de uma peça ou de um filme de temática non-sense. Mas não é bem assim. Esse enredo faz parte de nosso cotidiano, e as personagens são nossas conhecidas, embora nem sempre percebam a nossa existência. A ação é repetitiva e não precisa de ensaio. Tudo é natural. O objeto que todos trazem nas mãos é um celular de última geração conectado à internet.
Faz muito tempo que o aparelho de telefonia móvel deixou de ser usado para alguém falar e ser ouvido. Ele acumulou inúmeras outras funções e hoje é banco, televisão, computador, agenda, diário, rádio, caderno, biblioteca, mapa, álbum fotográfico, guia de diversões, etc. É também uma forma de silenciar amigos e de ignorar as pessoas que estão próximas, sob a desculpa de constante comunicação com quem está distante.
Nos ambientes coletivos, e nos privados também, as pessoas assumiram um comportamento que pode ser comparado ao dos hipotéticos zumbis, os seja, estão vivas, andando, mas parecem alheias à realidade circundante. Aparentemente, o mundo pode vir abaixo, desde que a conexão com a internet se mantenha estável. Rapidamente, amigos, colegas, parentes, vizinhos, as demais pessoas, e até mesmo os próprios zumbis pós-modernos, deixaram de ter cheiro e calor, passando à condição de meros contatos online (ou não) em uma agenda cada vez mais ampla.
O advento da comunicação instantânea, com suas inúmeras facilidades, acabou fortalecendo o paradoxo camoniano de sentir-se “solitário entre gentes”. No meio de uma multidão, as pessoas isolam-se diante de suas telas e acreditam que estão acompanhadas de pessoas que não estão fisicamente por ali. E, mesmo quando ocorre um encontro corpo a corpo, não é raro o caso em que cada um dos elementos empunhe seu celular e comece a bater papo usando um dos inúmeros aplicativos criados para este fim.
Sorrindo para as telinhas e fechando a cara para quem ousar interromper suas conversas virtuais, os zumbis parecem frequentar um mundo particular no qual é possível ziguezaguear por ruas e avenidas, com passos sincronizados, onde os involuntários encontrões são desculpados com monossilábicos grunhidos. Nesse perigoso mundo de silenciosas comunicações, os transeuntes escapam milagrosamente de serem atropelados por veículos cujos condutores também dirigem e teclam ao mesmo tempo e onde os guardas de trânsito, alheios às buzinas incessantes, encostam-se no poste mais próximo para receber e enviar mensagens.
No afã de uma conexão 24 horas com o mundo, recebendo informações em tempo real a todo momento, nossos zumbis não têm mais dúvida de que a vida online é a própria realidade e que tudo fora dela parece tão estranho com se voltassem para o tempo das sombras e das cavernas. Podem até perder a conexão com o mundo, mas jamais com a internet. Tudo pode ser feito online. Ficar offline é morrer.
ESCOLA: UM ALVO FÁCIL
José Neres
(Professor e membro da Academia Maranhense de Letras)
Quando ouvimos a palavra escola, quase sempre vem à mente a ideia de crianças e adolescentes recebendo informações e conhecimentos necessários para todas as etapas do desenvolvimento físico, emocional e cognitivo do ser humano. Essa palavra deveria trazer consigo também a noção de alunos, famílias, professores, gestores e comunidade em geral irmanados no objetivo de oferecerem aos cidadãos melhores condições de vida e oportunidades de progresso para toda a nação.
No entanto, basta abrir um jornal, assistir aos noticiários da TV, sintonizar nas ondas de uma emissora de rádio ou navegar pelas inúmeras páginas da internet para que se perceba que a imagem de escola como ponto de proteção e de aprendizagem não tem passado de uma utopia ou de uma antiga miragem.
Escola sempre foi um alvo fácil para as investidas de bandidos e de pessoas mal intencionadas, mas durante muito tempo essa instituição foi vista como algo protegido dos perigos que rondavas as ruas, mesmo que em seus arredores roubos, assaltos, brigas e tráfico de drogas sempre tenham se feito presentes e até mesmo se inseridos no cenário escolar cotidiano e no imaginário de todos os atores sociais envolvidos no processo educacional.
Mesmo que atos de incivilidade e de violência há décadas já façam parte da lista de chamada das escolas, recentemente a população começou a entrar em contato com a divulgação de casos de invasões, roubos, vandalismo e depredação desses prédios que antes eram vistos como zona de proteção contra as violências que imperavam nas ruas e nos demais ambientes sociais.
Os acontecimentos de violência nas escolas deixaram de ser pontuais para fazerem parte de uma estatística que a cada dia se torna mais sombria quando deixam de serem vistas com a frieza dos números e passam a ser analisados como dados que compõem um cenário social cada vez mais desesperador.
Ao passar pela porta de qualquer uma das escolas, é possível perceber que o medo já faz parte do uniforme dos alunos e do planejamento dos profissionais da educação. O policiamento nos arredores das instituições de ensino, que sempre foi precário, está se tornando inexistente e, pior ainda, vem sendo substituído pela presença ostensiva de marginais e de traficantes que cercam a área como se fosse um feudo ou produtivo latifúndio, tratando alunos e alunas como potenciais consumidores de seus produtos e todos os que lutam contra essa dominação como inimigos mortais que devem ser eliminados a qualquer custo.
E nessa guerra civil que se instalou silenciosamente em cada bairro do país, a escola deixou de ser uma trincheira de proteção para aqueles que sonhavam encontrar na educação um passaporte para um futuro promissor e passou a ser um alvo fácil para quem acredita que nada tem a perder e muito a ganhar e vê na educação uma espécie de obstáculo para alcançar os fins almejados. E o número de vítimas se multiplica a cada momento.
Enquanto escolas são invadidas, saqueadas por marginais e também sucateadas e esquecidas por administrações sem compromisso com a educação, guardas, alunos, professores, gestores e familiares... todos sem a mínima noção de como se protegerem desses insanos ataques que vêm de todos os lados ainda lutam tentando oferecer uma educação com o mínimo de qualidade para quem sonha sobreviver a esse fogo cruzado.
Realmente a escola é um alvo fácil de ser atingido, tanto pela inércia administrativa quanto pela violência circundante, mas ela tenta resistir. Porém se não receber o tratamento adequado um dia passará a fazer parte das estatísticas de vítimas fatais de uma guerra contra o futuro.
A TÍTULO DE HOMENAGEM
José Neres - Escritor, Professor de Literatura Brasileira
Era para ser uma tarde comum, como outra tarde qualquer,mas quando a noite desceu sobre Alcântara, sobre o Largo do Desterro e sobre o Cais da Sagração, e os bentivis começavam a procurar um beiral para descansar, uma notícia deixou a cidade duas vezes perdida: Josué Montello, a cabeça de ouro da vida literária maranhense,acabara de receber sua última convidada.
Naquele momento a morte deixava de ser apenas uma sombra na parede e levava o criador de mil imagens para uma viagem fantástica por um labirinto de espelhos, deixando entre seus conterrâneos, além de mais de uma centena e meia de obras, um camarote vazio e uma escola de saudade.
Naquela hora, como se estivéssemos no silêncio de uma confissão, tudo muda na cidade: a lanterna vermelha perde o brilho, a estante giratória pára, o fio da meada se perde, o caminho da fonte se fecha e os longos diários recebem o ponto final. Josué deixa de estar entre nós. Sua indesejada aposentadoria definitivamente chega para levá-lo para junto dos tesouros de Dom José, para viver mil aventuras de Calunga, ou para, através do olho mágico da eternidade, quem sabe na próxima noite de natal, ou numa noite de papel picado, ver Glorinha, com seu rosto de menina, recitando os versos do anel que tu me deste ou brincando com os bichinhos do circo.
Montello, que ainda na casa dos quarenta, já dominava Cervantes e o moinho de vento, já mostrava para seu povo a beleza clássica de Ricardo Palma, Antônio Nobre, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Gonçalves Dias e Stendhal, entre outros, sempre alinhando uma palavra depois da outra, aos quase noventa anos, com as janelas fechadas, mas com a alma aberta para o infinito, põe um ponto final em sua vasta obra, que não é miragem, nem peso de papel, mas sim arte, vida, amor e dedicação.
Então, naquele triste 15 de março de 2006, ao som dos tambores, sem precisar de um baile de despedida, Josué Montello subiu os degraus do paraíso e, em uma viagem sem regresso, sob a luz da estrela morta, os anjos em aleluia foram mostra para a pedra viva das letras maranhenses seu apartamento no céu, com uma bela varanda sobre o silêncio, de onde, enquanto o tempo não passa, ele para sempre será lembrado.
Publicado no Jornal O Estado do Maranhão em 26/03/2006.
PASSEANDO PELAS MORADAS DA MEMÓRIA
José Neres
Para muitas pessoas, passear pelas ruas de São Luís equivale a dividir espaço com prédios antigos e deteriorados, quase na condição de escombros. Alguns veem possibilidades econômicas, outros percebem oportunidades turísticas desperdiçadas e muitos preocupam-se apenas em mapear os problemas enfrentados diariamente pela histórica cidade. Contudo, no meio dessa profusão de olhares há também quem veja a urbe e seus históricos casarões como fonte inesgotável de pesquisa.
E foi, provavelmente, com o desejo de expandir seus olhares para além das obviedades e também para mostrar que em cada parede dos antigos prédios há mais que água, pedra e óleo de baleia, havendo também lágrimas, suores e muitas histórias, lendas e tradições, que o jovem professor e pesquisador Flaviano Menezes da Costa dedicou vários meses de sua vida à tarefa de pesquisar uma espécie de ilação entre alguns dos prédios que compõem a arquitetura de São Luís e a produção literária de diversos prosadores que ambientaram seus livros nesses casarões.
O que era para ser apenas uma dissertação de mestrado, como outras tantas que, após defendidas para uma banca e para um restrito público, adormece em uma gaveta e/ou na prateleira de referência de alguma biblioteca local, ganhou alguns retoques e se transformou em um belo e interessante livro intitulado “Moradas e Memórias – O valor patrimonial das residências da São Luís Antiga através da Literatura” (EdUfma, 2015, 232 páginas).
Dividido em quatro longos capítulos e em um apêndice, o livro mostra como diversos prosadores (Aluísio Azevedo, Clodoaldo Freitas, Humberto de Campos, João Mohana, Josué Montello, Conceição Aboud, Nascimento Moraes e Waldemiro Viana) ambientaram suas obras de ficção em locais que passam a pertencer tanto à história quanto à literatura. Porém o pesquisador não se limitou a arrolar obras, autores, personagens e prédios em uma extensa lista baseada apenas no factual. Não. Ele aproveita os aspectos históricos, geográficos e literários imiscuídos nas muitas obras lidas e analisadas para mostrar, destrinçar e discutir questões toponímicas, topofílicas, socioculturais e discursivas tanto pelo viés do olhar literários quanto pelo prisma da historiografia social e da geografia humanista cultural. O resultado é um bem elaborado painel que une diversos campos do saber em torno da preservação tanto dos bens físicos como também de uma fortuna imaterial que precisa ser protegida para que o presente e o passado possam ser refletidos em um futuro próximo ou distante.
Escrito em linguagem acadêmica, mas que não compromete sua leitura, e rico em ilustrações, o livro “Moradas e Memórias” pode servir a diversos fins que vão desde a formação de público leitor para a literatura maranhense, pois diversas obras são estrategicamente discutidas ao longo volume, até uma redescoberta da história do Maranhão a partir de seu acervo arquitetônico, passando também pela perspectiva de um turismo lítero-cultural e até mesmo para aplacar o incessante interesse por curiosidades a respeito do patrimônio e de suas peculiaridades. Mas quem não estiver interessado em nenhum desses aspectos pode se divertir (e aprender!) com o apêndice que conta um pouco da história de alguns casarões pelos quais passamos diversas vezes sem nos atermos ao glorioso passado que ali habita.
O livro de Flaviano Menezes é uma daquelas obras que fazem com que o leitor perceba que, em cada caminhada pela Cidade, é possível ir além da superfície do olhar imediatista e ver que cada prédio é constituído de fundação, paredes, cobertura, história, saudades e memórias.
NICEAS DRUMONT: UM TALENTO ESQUECIDO
José Neres
(Professor, pesquisador e membro da Academia Maranhense de Letras)
Temos uma grande dívida para com alguns artistas que, depois de muito contribuírem para o sucesso de nosso Estado, foram relegados ao esquecimento. Entre esses nomes que não deveriam ser esquecidos está o de Nicéas Drumont.
Querido e reverenciado por toda uma geração, Nicéas Alves Martins, cujo nome artístico era Nicéas Drumont (1951-1990), foi um dos mais importantes nomes da música brasileira, tendo suas composições gravadas por intérpretes do porte de Sérgio Reis, Fafá de Belém, Sula Miranda, as Irmãs Galvão, Nando Cordel, Ângelo Máximo, Rosa Reis e muitos outros.
Nascido no povoado Itaipu, em Rosário, e vindo de uma família humilde, o rapaz desde cedo demonstrou grande habilidade no trato com as palavras, pois extraía com facilidade a musicalidade escondida por trás de versos por ele mesmo inventados. De alguma forma ele sabia que aquele dom poderia servir mais do que para animar reuniões familiares e encontro com amigos.
O talento de Niceas não ficou restrito a seu povoado, a São Luís ou mesmo ao Maranhão. Buscando projetar seu nome, ele resolveu arriscar uma carreira artística fora de sua terra. Mesmo enfrentando dificuldades financeiras e a consequente separação da família, embarcou rumo ao Rio de Janeiro, onde permaneceu por aproximadamente dois anos, enfrentando as dificuldades naturais e os obstáculos de quem contava apenas com o talento e com a vontade de vencer pela própria arte.
Após deixar o Rio de Janeiro, o artista maranhense foi aventurar sua sorte em São Paulo, de onde conseguiu se projetar para todo o Brasil. Suas composições começaram a tocar nas rádios e ele se tornou um nome bastante requisitado por parte de diversos intérpretes que se encantavam com as apuradas letras e com as soluções melódicas do jovem compositor.
Músicas como “A primeira Namorada”, gravada por Ângelo Máximo; “no calor de seus abraços”, na voz das Irmãs Galvão; “Dor de Cabeça”, com Gene Araújo e “Senzalas”, na imortalizada por Rosa Reis eram pedidas por públicos das mais diversas classes sociais, sem contar também que o próprio Nicéas também encantava multidões cantando sucessos como “Gavião Vadio”, “Crioulo Sonhador” e “Meu Fraco”.
O talento com a palavra e com os sons permitiam que Nicéas transitasse por diversos gêneros musicais, do samba ao sertanejo, passando pela jovem guarda e pelo forró, com letras capazes de despertar sentimentos múltiplos que podem ir da picardia (Caldinho de Mocotó) ou até mesmo a uma reflexão política, como é o caso de “Peregrinação”.
Após tanto sucesso, esse artista maranhense foi aos pouco sendo esquecido e suas composições, embora algumas ainda continuem tocando em rádios, hoje mais imortalizam seus intérpretes que lembram o compositor.
Há alguns anos, o professor Inaldo Lisboa publicou o livro “Nicéas Drumont: O Gavião Vadio”, no qual intercala momentos cruciais da breve passagem de Nicéas pelo nosso mundo com fragmentos de seus principais trabalhos. Mas nem mesmo esse esforço foi suficiente para ressuscitar artisticamente esse talentoso artista. E, na falta de novas edições de seus trabalhos, quem tiver interesse em conhecer as composições desse maranhense ou de ouvir sua afinada voz, dever recorrer aos mecanismos da internet.
OS CONTOS CÁUSTICOS DE
MARCOS FÁBIO
José Neres
Marcos Fábio Belo Matos começou, como muitos autores, sua trajetória literária investindo no campo da poesia, com o livro Anonimato, publicado em 1990. De lá para cá, o poeta cedeu espaço para um excelente pesquisador e um competente ficcionista, que já publicou quase duas dezenas de livros e que está sempre em processo de produção de novos textos, mas que já demonstra haver optado por um estilo capaz de imprimir suas digitais principalmente em seus contos.
E é na construção de contos que o escritor e membro da Academia Bacabalense de Letras realiza o melhor de sua produção ficcional. Embora seu estilo não busque solidificar inovações técnicas e/ou estilísticas, nem corra atrás de formas fórmulas mirabolantes de escrita, Marcos Fábio consegue manter um padrão de escrita capaz de agradar tanto ao leitor iniciante quanto aos mais exigentes em termos de obra literária.
Agora, quase no fechar das cortinas de 2015, o escritor traz a lume o livro Contos Cáusticos (Curitiba, Editora Moura Sá, 92 páginas), contendo 43 narrativas breves, algumas brevíssimas, verdadeiros microcontos. O cerne dos textos está centrado nos encontros, desencontros e até reencontros que, sem aviso, a vida proporciona. As personagens do livro geralmente são pessoas angustiadas que vivem à procura de algo que talvez se esconda dentro de cada um.
As narrativas são quase sempre lineares, sem malabarismos verbais, pois o interesse do autor é esmiuçar comportamentos e, às vezes, ironizar situações cotidianas, que poderiam passar de forma imperceptível caso não fossem vertidas em forma de arte. A acidez das situações perpetradas pelo autor pode tanto levar à perplexidade, como em Voz de Confiança (p. 31), quanto ao riso, conforme acontece em Pequenas Maldades (p. 64). Mas o auge do livro está na contenção verbal do autor. Usando poucas palavras, ele consegue traçar todo um cenário narrativo, mostrando que, em alguns casos, a economia de palavras escritas pode esconder uma riqueza de significados, como ocorre no significativo Separação (p.26).
No carro, a filha voltou para o banco da frente.
As diversas faces da violência são outro tópico abordado por Marcos Fábio. Seja por causa de um bem material (O Relógio, p. 32), seja por um estupro-homicídio (Confissão, p, 27), ou por uma agressão sofrida há décadas (Tapa na Cara, p. 55), as personagens vivem pagando por suas decisões quase sempre equivocadas e que se transformam em motivo de arrependimento. Essa sensação de arrependimento é explorada em suas diversas matizes. Em alguns casos, esse sentimento vem em forma de um mero bilhete encontrado em uma caixa, como no excelente Guardados (p. 71), na descoberta da perfeição da mulher que não é sua (A Mulher Perfeita, p. 61) ou ainda no vingativo Zanoio (p. 62), mas, de uma forma ou de outra, a maioria das personagens convive com seus traumas e com seus problemas existenciais e deles não conseguem se esconder.
De forma geral, excetuando-se o conto Tecidinho Adiposo (p. 34), que tem uma abordagem quase romântica, todos os textos do livro trazem a corrosão e a acidez estigmatizadas na pele e no comportamento das diversas personagens. Mais uma vez Marcos Fábio Belo Matos traz a público um livro saboroso e cheio de bons momentos. Uma obra para ser lida e relida. Talvez os leitores se encontrem em algumas das histórias. Tudo e possível neste mundo cáustico que dá tantas voltas.
OITENTA NAUROS DE POESIA
José Neres*
Especial para o Alternativo
(Jornal O Estado do Maranhão, 02.08.2015)
Praticamente todas as ruas, praças, becos e pedras de São Luís estão impregnados do olhar, dos passos e dos versos do grande poeta Nauro Machado, um dos mais argutos críticos da cidade e, ao mesmo tempo, um de seus maiores defensores.
Dono de uma singularíssima dicção poética, Nauro Machado começou a publicar seus poemas há quase seis décadas, quando, em 1958, trouxe à luz seu livro de estreia – Campo sem Base, no qual já é possível encontrar um de seus mais emblemáticos poemas: O Parto, em cujos versos já traz uma espécie de profissão de fé do que seriam seus poemas a partir daquele momento. O então estreante já tinha consciência de que habitam no mesmo ser um Homem e um Poeta, mas que só deles um pode aspirar à completude, pois o lado poesia do ser humano está sempre em construção, “é duro e dura/ e consome toda/ uma existência”.
A partir desse primeiro livro, uma profusão de outros textos de autoria do vate maranhense inundou a vida poética da Cidade. Mas essa inundação de palavras, imagens, cores e versos não se limitou à Ilha e acabou transbordando para outros pontos do estado, do Brasil e de outros países, tornando Nauro Machado um dos mais conhecidos poetas maranhenses do mundo a partir do último quartel do século XX e no início do XXI.
Autodidata, Nauro Machado fez do contato com grandes nomes da literatura universal a sua escola e sua universidade. Sua poética dialoga em altíssimo nível com o que temos de melhor na obra dos grandes mestres da literatura de diversas nacionalidades e épocas. Em uma leitura mais atenta é possível perceber em seus textos traços da vivência diária com grandes poetas como Mallarmé, Cummings, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Gonçalves Dias e Ezra Pound. Mas sempre com respeito à própria identidade na construção dos versos.
A princípio, no entanto, a obra do autor de O Exercício do Caos foi considerada estranha, principalmente dentro de sua própria província, e recebeu a pecha de hermética, indecifrável ou ininteligível. De maneira paradoxal, o mesmo autor cultuado como dono de versos geniais por críticos de altíssimo nível em diversos eventos no Brasil e no exterior era um quase desconhecido em sua própria terra. Essa distorção começou a ser corrigida quando alguns estudiosos locais começaram a perceber que a obra de Nauro Machado poderia transformar-se em um vasto campo para pesquisa e para análises.
Estudos como os de Maria de Nazaré Cassas de Lima Lobato (A Revelação de Nauro Machado), Ricardo Leão (Tradição e Ruptura: A Lírica Moderna de Nauro Machado) e Antônio Ailton (A Humanologia do Eterno Empenho) vieram a somar-se a outros nomes que já eram referência nos estudos literários e que admiravam a obra Naurena, como, por exemplo, Nelly Novaes Coelho, Assis Brasil, Carlos Nejar, Pedro Lyra, Fábio Lucas e Paschoal Motta, servindo como ponte de divulgação da obra do poeta e o público em geral.
Mesmo assim, com quase meia centena de livros publicados, dezenas de prêmios e horarias recebidas e uma carreira de sucesso, muitas pessoas que diariamente cruzam com ele pelas ruas de São Luís não sabem que aquele homem de olhos claros, aproximadamente 1,70m de altura, jeito calado, olhar enigmático e passos decididos, munido de seu guarda-chuva e de sua pasta cheia de livros é uma das maiores referências poéticas da atualidade. Então as pessoas passam como se passassem por um transeunte qualquer e nem imaginam que tiveram a honra de passar por um homem que leva em sua bagagem a fina flor da poesia.
Agora, em seu octogésimo aniversário, esse homem nascido no dia 02 de agosto de 1935, filho do senhor Torquato Rodrigues Machado e Maria de Lourdes Diniz, esposo da professora e também escritora Arlete Nogueira, pai do cineasta Frederico Machado, autor de inúmeros poemas e que enfrentou com galhardia enfermidades, indiferenças e até mesmo maledicências, ao atravessar calmamente a Praça, pode ter a certeza de que seu nome já faz parte da história de nossa literatura e de que a cidade que ele cantou em tantos versos se entranha mais e mais a cada segundo nas páginas de seus livros.
* Professor, escritor e membro da Academia Maranhense de Letras
O MEDO MORDE NOSSOS CALCANHARES
José Neres
Os mais velhos contam que em um tempo talvez não muito distantes, depois de horas e mais horas de boa conversa nas calçadas ou na porta das casas, as pessoas se recolhiam e iam dormir. Às vezes esqueciam portas e janelas abertas, e mesmo assim tinham um sono tranquilo e sem sobressaltos. Naquela época, quando, durante a conversa, aparecia alguém na esquina ou no final da rua era a certeza de que chegava mais uma pessoa para engrossar o grupo ou garantia de que haveria mais piadas, mais “causos” e muitos outros minutos de boa conversa.
Hoje, nossa sociedade está muito diferente. Todos nós somos prisioneiros de nossos próprios lares. Os vizinhos são quase sempre desconhecidos com quem muito mal trocamos um “oi” ou um passageiro “bom dia”, “boa tarde, “boa noite”. Aquela conversa animada na calçada não existe mais, e as ruas se tornaram um deserto urbano que tem que ser atravessado com calma e sem a certeza de que conseguiremos chegar ao destino premeditado. Todos os moradores se trancam em casa e têm medo até mesmo do menor ruído que possa ser similar a tiro, explosão ou grito.
Quando não se tornam um deserto, nossas ruas se assemelham a uma selva de asfalto (esburacado) e concreto, infestada de animais ditos civilizados e até mesmo escolarizados que espreitam os incautos transeuntes para deles, sem piedade, tirar-lhes o suor, o sangue, a vida. Depois, fogem e começam a perseguir novas vítimas em uma interminável carnificina noticiada todos os dias nas páginas policiais.
Hoje, quando alguém desponta no início da rua ou na esquina, não é mais motivo de júbilo, mas sim de preocupação. A simples imagem de um estranho que se aproxima já é motivo mais que suficiente para que os poucos aventureiros que ainda se arriscam a ficar nas calçadas decidam entrar em suas humildes e inseguras fortalezas em busca de um refúgio.
Muros altos, cercas elétricas, alarmes, portões reforçados de alumínio e câmeras de segurança agora fazem parte da fachada da maioria dos lares, que, rapidamente, deixaram de ser apenas residências, para se constituírem em refúgios emergenciais, porém sem a menor garantia de que dentro deles alguém esteja seguro. Da mesma forma, os carros deixaram de ser meros meios de transporte e se converteram em extensão da segurança que se deseja em casa. Revestimento fumê, travas elétricas e blindagem tornaram-se itens obrigatórios para quem almeja chegar a sua residência com o menor número possível de sustos. Isso sem contar com uma obrigatória apólice de seguro, que garanta reverter pelo menos um pouco dos prováveis prejuízos materiais, já que os danos morais e psicológicos tendem a ser irreversíveis.
Já não temos mais o prazer de circular livremente pelas cidades. Andamos sobressaltados e a insegurança é nossa companheira inseparável. Estamos condenados a viver em prisões que construímos para serem lares, acorrentados ao medo que morde nossos calcanhares em cada movimento mais brusco. E, enquanto observamos a rua, agarrados às grades de nossas casas, das escolas, dos estabelecimentos comerciais, somos obrigados a conviver com o sorriso cínico dos marginais que, sentindo-se senhores do mundo, esperam mais uma vítima e dela tiram ao mesmo tempo o dinheiro, a dignidade e a esperança de um mundo melhor.
GRANDES PERDAS LITERÁRIAS
José Neres
(Professor de Literatura)
O ano de 2014 vem sendo extremamente cruel para com as letras. Mal passamos da primeira metade do ano e já temos motivo para lamentar o passamento de diversos escritores. Como nem todos os autores falecidos faziam parte do chamado cânone literário, algumas mortes não tiveram cobertura da imprensa, mas mesmo assim tiveram a ausência sentida por parte dos admiradores de suas obras.
Logo no início do ano, faleceu o poeta argentino Juan Gelman, homem que viveu na pele os horrores da ditadura e transformou o próprio sofrimento e a ausência dos entes queridos em versos de excelente qualidade. Outro nome de ressonância mundial que também fisicamente se calou foi o do colombiano Gabriel García Márquez, o criador do universo mágico de Macondo e ganhador do prêmio Nobel de Literatura. O sofrimento do autor de Cem Anos de Solidão foi amplamente divulgado e sua morte causou comoção entre seus leitores e o público em geral.
A literatura nacional perdeu também alguns escritores de grande importância. De um dia para outro, perdemos o talento narrativo de João Ubaldo Ribeiro e o pensamento crítico de Rubem Alves e da poesia de Ivan Junqueira. O primeiro era conhecido por seus contos e romances extremamente bem elaborados e carregados de humor, de fina ironia e de densidade social. Livros como Viva o Povo Brasileiro, Sargento Getúlio e A Casa dos Budas Ditosos são bastante populares e inscreveram o autor na constelação dos grandes romancistas brasileiros.
Rubem Alves por sua vez foi um dos mais marcantes educadores do Brasil. Um pensador na melhor acepção da palavra, sempre preocupado com os rumos da educação no Brasil e com as relações entre a aprendizagem e o bem-estar físico e mental. A obra desse educador, embora já seja bastante apreciada, ainda precisa ser mais estudada e analisada, para que sua essência seja posta em prática.
Ivan Junqueira, poeta e crítico literário, dono de grande erudição e de uma verve poética inigualável, soube transformar tudo o que tocou em poesia, uma poesia viva e que transbordou as fronteiras do eu para banhar-se nas águas da universalidade. Junqueira partiu depois de prestar relevantes serviços à cultura brasileira, seja pelo talento poético, seja pelo senso crítico que lhe permitiu ser reconhecido ainda em vida como um dos grandes nomes das letras brasileiras modernas.
Nem bem os amantes da literatura se recuperavam do choque causado pela morte dos escritores acima citados, os jornais anunciam o falecimento de Ariano Suassuna, um dos mais populares autores da literatura contemporânea brasileira. Reconhecido como um dos gênios das letras nacionais da metade do século XX e início do século XXI, Suassuna deixou-nos obras que acabaram imortalizadas no imaginário do povo, mesmo daquelas pessoas que não tiveram acesso a seus livros, pois muitos de seus trabalhos foram adaptados para a TV e para o cinema, como é o caso do Auto da Compadecida, um dos grandes sucessos da dramaturgia nacional.
No Maranhão também diversas perdas foram sentidas neste ano. A começar pelo historiador, contista e cronista Wilson Pires Ferro, que logo no primeiro mês cumpriu sua jornada no mundo terreno, deixando-nos como herança livros como Quando eu era Pequenino e Depois que o Sol se Põe.
Outro passamento bastante sentido foi o do cronista e porta José Chagas. Reconhecido ainda em vida como um dos maiores literatos do Maranhão e muito apreciado por seu público, seja por sua prosa, seja por seus versos magistralmente construídos, Chagas será eternamente lembrado por livros como MaréMemória e os Canhões do Silêncio, duas obras de extrema qualidade técnica e que demostram um escritor maduro e consciente de seu papel como formador de opinião, sem abrir mão da arrojada tessitura poética.
Ubiratan Teixeira, jornalista, teatrólogo, cronista e ficcionista, foi outro nome que deixou um vazio em nossas letras. Dono de um estilo inconfundível que privilegiava as classes menos abastadas da sociedade, denunciando as mazelas sociais e dos descasos para com a cultura do Estado, o Velho Bira, como também era conhecido, imprimiu suas digitais nas letras não só do Maranhão, mas de todo o Brasil, ao produzir livros como Vela ao Crucificado e o Dicionário de Teatro, obra indispensável para quem aprecia as artes cênicas.
Menos conhecido do grande público, mas admirado pelos amantes das letras, o prosador Ariel Vieira de Moraes também partiu neste 2014. Mesmo fisicamente distante do Maranhão há vários anos, a obra de Ariel deve ser considerada como uma das mais sólidas de nossa literatura. Livros como O Anjo Modernista, Na Hora de Deus – Amém e A Cobra Divina são verdadeiras obras-primas de um autor que ainda teria muito a oferecer para nossa cultura.
Essas perdas são irreparáveis. Mas fica o consolo de saber que esses intelectuais em muito contribuíram para que nosso universo fosse mais belo, mais poético, mais suave e infinitamente mais cheio das ricas alegorias criadas por esses homens iluminados com o dom de transformar ideias em palavras, em magia e em vida.
Nosso muito obrigado a todos eles.
VICIADOS EM COLA
José Neres
(Professor)
A princípio, pelo título, o leitor poderia ser levado a pensar nas rotatórias das grandes cidades, nas quais, até hoje é possível ver crianças, adolescentes e adultos com um paninho embebido em solvente, cola de sapateiro ou qualquer outra substância tóxica. Vício este que se vê rapidamente substituído pelo devastador uso do crack. Mas não é desse triste quadro que vamos falar neste breve texto, mas sim de outro tipo de vício que nem sempre faz mal ao corpo, mas que pode ter efeito devastador para a sociedade.
Iremos, sim, fala de pessoas, ditas estudantes, que, em qualquer grau de estudo, ficaram viciadas em usar cola (e suas variações linguísticas: pesca, sopro, “apoio pedagógico”, etc.) durante as provas ou atividades avaliativas.
Os artifícios utilizados pelos “estudantes” a fim de fraudarem o processo vão até onde alcança a imaginação humana, ou até mesmo, em alguns casos, ultrapassam os limites impostos pela lógica.
Há os métodos mais antigos, que hoje podem soar como rudimentares, mas que até hoje têm suas aplicabilidades: anotações em borrachas, papel escondido no tubo da caneta, fórmulas escritas na palma da mão ou outras partes do corpo, olhos esticados para a prova do colega, o conhecido sussurro de “passa a primeira”, o desesperado pedido de “passe o que tiver”, os papeizinhos que correm de mão em mão pela sala, as xérox reduzidas de textos, e assim por diante.
Existem também os métodos mais modernos que utilizam a tecnologia para fins escusos: ponto eletrônico, mensagens de texto com gabarito das provas ou mesmo com a imagem da prova e suas respectivas respostas, acesso à internet com o intuito de localizar a questão (em casos assim, o “estudante” fica indignado se a questão foi elaborada pelo professor), celulares escondidos nas partes mais improváveis do corpo e tantos outros artifícios.
Alguns tipos de cola (pesca) chegam a ficar na linha limite entre a criatividade e a bizarrice, como, por exemplo, alguém frequentar aulas de libras com o único intuito de, silenciosamente, comunicar-se com companheiros que estejam dentro ou fora da sala de aula, passando as respostas para os colegas ou recebendo resoluções destes; mímicas feitas para com intenção de passar respostas; supostas agressões verbais que, na verdade, são códigos previamente combinados, como é o caso de “Não está entendendo essa questão, sua anta”? (para letra A); “besta” (para letra B), “cavalo” (para letra C); “doido” (para letra D) ou “égua” (para letra E). Tudo tão bem orquestrado que é capaz de deixar o professor sem saber o que fazer diante da situação.
Contudo, independentemente do grau de criatividade ou não durante o processo de cola em prova, é importante ter em vista que se trata de um ato condenável por diversas razões. Uma delas é que quem se inicia nessa prática possivelmente se acostumará com as aparentes facilidades de ter uma nota sem dispender esforços. Desse modo, as aparentemente inocentes colas do mundo escolar se transformarão em compra de vagas para concorridos cursos de universidades e até mesmo subornos para alguém de maior capacidade intelectual para fazer trabalhos durante o andamento do curso.
Também há de ser levado em consideração que quem fornece a “pesca” está colaborando para tirar uma pessoa incompetente da sala de aula e levá-la para o mundo profissional. Ao mesmo tempo, os usuários de tais expedientes dão largos passos rumo a uma vida profissional medíocre e desprovida de valores éticos.
O mais interessante é, no final de um curso em que a pessoa nada fez para merecer o diploma, vê-la fazendo um juramento diante dos próprios colegas, da família, dos professores e de uma sociedade inocente que irá receber em seu seio mais um corrupto diplomado (Publicado em O Estado do Maranhão)