A MORDAÇA
José Neres
À mesma boca que grita
- Nunca fiz
é vetado sussurrar
- Nunca farei
UM
José Neres
Mais de mil sonetos falam de amor,
Dez mil idolatram a solidão,
Mas estes meus têm outro sabor,
Sabor de fome medo e podridão.
Os meus versos dão muito mais valor
Às lágrimas suadas pela mão
De um pobre e sofrido trabalhador
Que às gotas perfumadas da paixão
Eu não posso cantar sobre uma flor
Se, no mesmo jardim, no mesmo chão,
O que mais brota é dor e aflição
Eu, como posso escrever sobre amor
Se neste momento co’exatidão
Um irmão, sem pena, mata a outro irmão.
DOIS
José Neres
Ele, filho da estúpida Inflação,
Vaga, triste e roto, pelo caminho
Seco, agreste de amor e carinho,
Onde só brota fome e decepção
Mas no seu penar nunca está sozinho.
Será que segue com ele um irmão?
Não! Não! Muito mais… perto de bilhão
De pobres seguem bem devagarinho
Em busca d’água e pedaço de pão,
Pra enganar fome do magro filhinho
Que soluça chora e geme baixinho.
Já tem no cerne a dor da inanição,
Gordo presente da vó Inflação
Que nina o neto já tão friozinho