CONTOS

CONTOS

NÃO AO FEMINICÍDIO

 

Praticamente todos os dias abro o jornal e me deparo com notícias sobre feminicídio (prefiro a forma femicídio, mas isso é outra história). Cenas absurdas já estão sendo tomadas como normais e devem ser combatidas. Os assassinos quase sempre ficam impunes e ainda há quem coloque a culpa de tudo na vítima. O conto a seguir choca pela carga brutal de violência, mas pode também servir como reflexão sobre esse mal que precisa ser combatido

Sem dúvida, ainda vai haver alguém que considere a mulher da história como culpada pelo próprio desfecho. Mas, ao meu ver, o culpado será sempre o ser irracional que age mais por instinto do que pelo senso ético e moral.

Leia o conto e tire suas próprias conclusões.

 

ANTES DO PÔR DO SOL

À memória de Rubem Fonseca, o escritor

que transformou violência em arte

 

Era pouco. Eu tinha apenas duas balas no tambor do revólver. Era pouco. Antes do pôr do sol deveria haver três cadáveres naquele chalezinho insípido que cheirava a produto de limpeza barato.

Quando meti o pé na porta e entrei, aquele canalha ainda exibia uma invejável ereção, e ela só teve tempo de cobrir os seios com os braços, deixando à mostra o sexo que tantas vezes me pertencera e que ainda ontem à noite havia sido meu, entre gritos e gemidos alucinantes.

Tudo mentira. Tudo mentira.

Assim como mentira também tinha sido o brinde que ele fizera para mim hoje pela manhã, quando nos encontramos em um posto de gasolina e nos dirigimos, entre risos, ao barzinho anexo. Deixe que eu pago, disse ele metendo a mão no bolso, de onde deixou cair um pacote de camisinhas que havia acabado de comprar na loja de conveniências. Caímos na gargalhada. Você é muito safado. Quem é a piranha? Ele riu sem graça e apenas respondeu: Coisa boa, coisa muito boa.

E ele tinha razão. Ela realmente era magnífica. Linda da cabeça aos pés. Mas agora sei que nada vale.

Confesso que nem imagino quem tenha enviado aquela mensagem para meu celular. Tua mulher está te traindo com alguém muito próximo a ti. Abre o olho. Hoje vai ter festinha... rsrsrs. Pensei que fosse molecagem da galera. Não levei a sério. Contudo, outras mensagens vieram. Sempre no mesmo tom de deboche. E desta vez, logo depois do almoço, chegou acompanhada de um endereço. O endereço de alguns chalés na saída da cidade. Local discreto e comumente alugado por quem deseja privacidade.

O dono do empreendimento deve ser um cara muito inteligente. Nenhum dos chalés tem ligação com os demais, de forma que se torna muito difícil dois ou mais carros se encontrarem ao entrarem ou saírem dos encontros clandestinos. Toda a transação financeira é feita via transferência e nada de comprovantes enviados para celulares ou e-mails. A confiança era a base do sucesso.

Resolvi conferi a veracidade da denúncia anônima. Até o número do chalé era citado na última mensagem, que vinha acompanhada da imagem de um touro. Aquilo me fez muito mal.

Desde que me casei om ela, nunca nem pensei em traí-la. Sempre fui fiel. E agora estava ali naquela situação embaraçosa. Ela havia puxado o lençol da cama para cobrir sua nudez. Nele não se via mais nem sinal de excitação. O medo estava estampado no olhar de ambos.

Desgraçadamente, sempre esqueço de carregar o revólver que tenho no carro. Gastei quatro balas com brincadeira de acertar latas e não as repus. O ideal era matar os dois e depois cometer o suicídio. Já puxei cana. E sei que a vida na cadeia não é fácil. Minha mãe, aos 73 anos, não resistiria ao saber do que ocorreria ali. Mas não dava para recuar. Só o sangue me livraria daquela vergonha!

O diabo é que só havia duas balas. Uma para cada um. Eu teria que fugir para sempre. Apontei o revólver para ele. As lágrimas rolaram de seus olhos verdes. Oh, mano, perdoa. Foi fraqueza nossa. Não precisa matar a gente por isso. Lentamente apontei a arma para ela. Seus olhos me fuzilaram com a ira de quem se acha com razão. Atira, corno desgraçado. Pelo menos vou morrer sabendo o que é sentir prazer de verdade. Atira!

Não tive dúvida. Atirei no peito dela, senti o sangue espirrar nos lençóis. Ele correu para socorrê-la. Parado aí. Ele estancou. Nada de ajudar. Quero ver essa cadela sangrar até morrer. Ainda tenho uma bala.

Ele se curvou e começou a chorar convulsivamente. Mano, não me mate, foi fraqueza mesmo. Do outro lado. Ela estrebuchava, tentando buscar ar para os últimos segundos de vida. Pedi que ele se vestisse rapidamente e ficasse de costas para mim. O tiro certeiro bem na cabeça acabou com a agonia dela.

Eu tinha um álibi. Ele também teria um. Restava-nos voltar para a cidade antes do pôr do sol e torcer para que nenhuma denúncia anônima chegasse aos ouvidos dos investigadores.

 Aos 73 anos, minha mãe não aguentaria perder dois filhos no mesmo dia.


LAÇOS DE FAMÍLIA

 José Neres

(do livro Restos de Vidas Perdidas, São Luís, FUNC, 2006)

 

 

Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. (Artigo 229 da Constituição da República Federativa do Brasil)

 

 

            Não, moço, faz devagar, que assim dói muito! Se eu não tô acostumada? Tô sim, mas não precisa doer tanto, né? Assim ficou melhor. Poxa, o senhor tem o negócio grande, hein? Como?... Como foi a primeira vez? Por que todo mundo pergunta isso? Não. Prefiro não falar, não. Não, não adianta insistir... Ah o senhor paga um pouco mais. Nesse caso, tudo bem. Ai, devagar! Melhorou... Bem, todo mundo pergunta a mesma coisa, o senhor não é o primeiro a querer saber. Um dia foi uma moça que tava fazendo umas fichas não sei pra quê. Ela passou quase uma hora perguntando um montão de coisas. Perguntou por minha família, por meus pais, onde eu morava e depois foi embora. Só disse obrigado e nada mais. Nunca mais apareceu por aqui. Ah, sim, desculpe, vou contar, calma. Bem, eu ainda era bem novinha. Tinha nove anos, sabe, era muito pobre, e ainda sou, né. Minha mãe não gostava muito de mim, só queria me bater e me puxar pelos cabelos. Todo dia eu apanhava. Meu pai só queria saber de beber. Bebia quase todo dia e ficava deitado no chão da sala, quase sempre nu. Mamãe era que cobria ele. Eu nem ligava. Cansei de ver ele e mamãe fazendo o negócio no chão da sala, já que nossa casa tinha só sala e cozinha. De noite, a sala virava quarto e todo mundo dormia junto. Papai bêbado, minha mãe toda suada e com bafo de cebola. Não... Não tenho irmão nem irmã. Sou filha única. Como ia dizendo. Papai sempre ficava nu em casa. Mamãe também. Aquele monte de cabelo... é por isso que eu não deixo o meu crescer, raspo ele de dois em dois dias. Não suporto aquela maçaroca no meio das pernas. Deus me livre! Assim é bom... Vai mais fundo... Isso... Não, não esqueci. Vou contar. Um dia ele chegou mais tarde que o normal e levou também um amigo para dormir em casa. Como disse antes, a casa era muito pequena. Ele nem ligou para isso e foi logo tirando a roupa de mamãe. Eu fingi que estava dormindo. Vi quando ele convidou o amigo para entrar nela. Mamãe não reclamou. Nunca reclamava de nada. Suportou entre soluços os dois ao mesmo tempo. Não, senhor, não tô chorando não. Nem tá doendo mais. Bem, eu era ainda menina, mas já tinha os peitinhos e todo mundo falava que minha bunda era bem grande. Senti uma mão passando pelo meu corpo. Apertei mais os olhos, para fingi que estava dormindo. Tiraram minha calcinha  e soltei um grito de dor quando aquilo entrou em mim. Senti o sangue escorrendo por minhas pernas. A dor era muito grande. Desesperada, abri os olhos. Era meu pai que estava sobre mim. Sim, moço, era meu pai mesmo. Ele babava meu rosto enquanto o amigo dele continuava fazendo aquilo com minha mãe. Comecei a chorar. Mamãe mandou eu calar a boca, disse que a dor ia passar logo, que eu já tava mocinha e que isso logo ia acontecer mesmo. Quando papai se levantou, o outro homem deixou minha mãe e caiu sobre mim, ainda bem que o negócio dele era pequeno. Senti aquela coisa quente dentro de mim. Foi horrível. Mamãe? Não, ela não me defendeu, não. Deu foi uma gargalhada e disse que eu já era mulher. O homem queria também por trás, mas não conseguiu, tava muito bêbado e dormiu logo. Todo mundo dormiu. Só eu fiquei acordada, chorando em silêncio. O que foi? O senhor não consegue mais? Cansou? Ah, sim, tudo bem, quer descansar um pouco. Não tem problema. Eu espero, já é final de noite mesmo e o senhor é muito legal. Sim, claro que posso continuar a história. Não. Não estava chorando, não. Conto tudo, sim para o senhor... Bem, depois daquela noite, papai só queria saber de mim. Era todo dia a mesma coisa. Mamãe começo a me bater mais ainda e um certo dia me jogou para fora de casa dizendo que eu não prestava. O que foi que eu fiz? Nada, claro. Não podia brigar com mamãe... Saí com a roupa do corpo. No começo achei muito legal. Não tinha hora para nada, podia ficar direto fora de casa e muitas outras coisas, mas, de repente, bateu a fome. Aí a coisa foi diferente. Olhei para um lado e para o outro e... Senhor? Desculpe, quer ouvir coisa mais interessante? Tá certo. Bem, só para ir mais rápido, fiquei com fome, não tinha dinheiro, então comecei a dar para poder comer. No começo foi para um peão que trabalhava na construção de uma casa. Ele me viu com a cara triste, me ofereceu comida, mas disse que eu precisava fazer um farvozinho para ele. Foi bem rápido, antes do chefe dele chegar. Nunca vi um homem feder tanto!... Depois de um tempo, percebi que os homens me comiam com os olhos e resolvi aproveitar. O quê? Minha mãe. Não, nunca mais vi ela. Meu pai? Não, ele não, sempre vai me visitar. Continua bêbado. Chega com aquele bafo de cachaça, me leva para um canto qualquer e manda ver. Mas eu já estou cansando disso, qualquer hora mando ele pro inferno. O senhor quer de novo? Vamos lá. Como é que o senhor quer. Ah, assim eu também gosto! Isso. Ia esquecendo, ele ainda leva quase todo o dinheiro que eu ganho. Devagar! Melhorou! Quantos anos eu tenho agora? O senhor não é da polícia, não é? Eu pergunto isso porque tem muito cana safado que quando sabe que a gente é de menor, fica ameaçando de levar para a cadeia só para comer de graça. Engenheiro? Deve ser uma profissão boa. Vou fazer dezesseis anos no mês que vem, no dia 12. Obrigado. Não, não vai ter festa. Só não vou fazer programa nesse dia. Vou no parque, brincar de roda-gigante. Não, não tenho o menor medo. Acho muito legal. Já? Não disse que essa posição é boa, não tem homem que resista. Sim, pode ir tomar banho. Não tem problema, depois eu vou. (...) Ficou bonito de roupa, passe o pente nos cabelos, para a mulher não desconfiar. Adoro homens de cabelos grisalhos. Ah, não pinta não, tá tão bonito assim... Quer ir até o carro? Pode ir, tem problema, não. Não se preocupe, sei que o senhor vai pagar. Conheço cara de quem é enrolão, e o senhor tem jeito de bom pagador. Espero, sim. Já pediu a conta? Eu peço. Aqui sempre demora um pouco. (...) Presente de aniversário? Nossa! Nunca recebi um. Que ursinho lindo! Era para sua filha? Vou cuidar bem dele. Obrigado pelo dinheiro também. Tem grilo não, sei que não pode sair daqui comigo. Eu chamo a moto-táxi. O pessoal daqui só arruma o quarto depois que está tudo ok para o freguês. Tchau. Quando quiser mais, me procure. Beijos. (...) Esses homens são todos iguais. Adoram ouvir essas histórias. Chega saem satisfeitos! Nossa! Já está ficando tarde... Ainda tenho muito trabalho hoje. (...) Poxa, você demorou pra caramba. O outro freguês já deve estar zangado. Vamos voando, papai...

 

DIA DOS NAMORADOS

José Neres

 

         Naquela época, eu era muito pobre. Pobre de doer na alma. Minha única riqueza era a paixão que eu sentia por Patrícia. Eu a amava de verdade.

         Amo-a até hoje.

         A pobreza era tanta que eu tinha que inventar algo para ter motivo para brigar com ela lá pelo dia 10 ou 11 de junho. Era uma forma de não dar o famigerado presente que o comércio nos empurra, e que nem sempre podemos comprar.

         Mas no dia 14 ou 15, invariavelmente, eu a procurava, pedia perdão e renovava meu amor por ela.

         Hoje, tantos anos depois, estamos casados e felizes. Já não sou tão pobre e posso comprar presentes para minha amada no Dia dos Namorados. Sempre lembramos daquela época em que eu brigava com ela para não dar o presente. Ela desconversa. Não gosta de tocar no assunto. Nem mesmo quando digo que nunca entendi aquela mania dela de me presentear, quando nos reconciliávamos, com um perfume feminino, invariavelmente embalado em um papel bem feminino.

         Graças à ajuda de um amigo dela, a quem nunca conheci, conseguimos abrir um negócio próprio, de venda de produtos de presente. Infelizmente faz tempo que não podemos ficar juntos no dia 12 de junho. O volume de vendar é muito grande. Ela me deixa tomando conta do negócio e vai para uma reunião muito longa com o amigo que nos ajudou. Ele mora longe e, por força de contrato, a prestação de contas é feita nesse dia e ela tem que viajar para encontrá-lo, pois ele não confia em prestações de conta enviada pela internet.

         Mas é lindo vê-la voltando para casa dia 13 ou 14, cansada, mas linda naquelas roupas novas que ela sempre ganha em suas viagens.

         Eu a amo muito. Muito mesmo. Ah, ela continua com a mania de me dar um presente feminino quando volta para casa, depois de prestar contar para seu maravilhoso amigo.

         Eu a amo muito. Amanhã ou depois ela volta. Vou deitar, o dia hoje foi muito cansativo. Trabalhei sozinho e em pé o dia inteiro. Vendi muitos perfumes de fragrância feminina que alguns rapazes compraram para suas namoradas. Algumas delas secretas... Deve ter muito marido sendo enganado por aí... rio por dentro enquanto faço a embalagem...

         Ela deve estar orgulhosa de mim. Pena que lá não pega celular e nem tem internet, mas logo, logo ela volta. Talvez até traga de novo uma daquelas lingeries sexys que eu adoro. Vou deitar e esperar. Estou muito cansado e minha cabeça está pesada e dói bastante.

          

 

O BRINDE

José Neres

 

A bem da verdade, é preciso dizer: meu pai nunca deixou que nos faltasse comida. Sempre tivemos até mais que o necessário para uma vida confortável. O que nosso pai não nos dava em palavras, afagos e carinhos, ele nos dava em comida e sorrisos. Não consigo me lembrar da voz dele. Não consigo esquecer seu sorriso meigo de dentes perfeitos. Falava pouco. Sorria o suficiente para encantar com seu silêncio.

“Pai, tô com fome!”. Era a frase que ele mais ouvia dos filhos. Três ao todo: eu, minha irmã e meu irmão mais velho. Nosso pai nada falava. Sorria. Ia à geladeira e preparava algo bem gostoso para todos. Comíamos e bebíamos felizes.

Mas isso foi antes da grande crise.

A grande crise chegou e abalou a todos. Papai se esforçava ao máximo para manter a casa. Mamãe, sempre alheia a tudo, começou a perceber que a despensa ia ficando vazia. Ela falava menos que papai, com o defeito de nunca sorrir. Mas da voz dela eu me lembro. Era voz de sofrimento.

A frase continuava a mesma: “Pai, tô com fome”. A comida vinha em quantidade menor, mas sempre vinha. A diferença era que papai já não nos acompanhava durante as refeições. Depois mamãe também parou de sentar-se à mesa conosco. A crise aumentava. Mas era diminuída pelo sorriso de meu pai.

A geladeira estava vazia, mas a fome continuava. Papai, com o olhar, chamou mamãe para a cozinha. Ouvimos o choro dela. Sentido. Distante. Mas minutos depois esquecemos tudo com a visão de um belo bife, bem passado. Papai parou de aparecer para nós. Vez ou outra, apenas botava a cabeça para fora pela porta da cozinha e dava um sorriso. Mas agora era um sorriso triste, dolorido.

A carne servida não deixava que sentíssemos a ausência de nosso pai. Um dia nossa mãe nos serviu apenas uma sopa com pouca carne e muito osso. Reclamamos. Ameaçamos chamar papai para resolver o problema. Queríamos carne. Estávamos acostumados era com carne, não com osso. Mamãe suspirou fundo e foi para a cozinha.

“Filhos... Venham cá!” A frase imperativa, mas quase inaudível, vinha de uma voz já quase esquecida. Nosso pai, depois de muito tempo, falava de novo. Entramos alegres e cozinha e paramos de súbito. Sentado em uma cadeira perto do fogão estava papai. Ou melhor, o que restava dele. Apenas a cabeça se mexia, lentamente. O pulmão e o coração eram visíveis através do esqueleto que teve quase toda a sua carne cortada, congelada, frita, assada, cozida...

Ele não precisou dizer mais nada. Compreendemos tudo. De seus lábios tristes brotou um sorriso. O último sorriso que ele dividiu conosco. Mamãe pegou uma taça de cristal. A última que restava e levou-a até a cabeça de papai. As lágrimas dos dois se misturaram e gotejaram na taça. Ele olhou para nós, triste, mas com a satisfação estampada no rosto. Mamãe, fez um gesto de brinde em direção ao esqueleto de papai, para si própria e depois em nossa direção. Abriu a geladeira e ali guardou para sempre as lágrimas dos dois.

Voltamos para a sala e nunca mais reclamamos da sopa de ossos que nos mantinha vivos.

 

Tempo 

José Neres

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Teresa Telles tinha tudo. Tinha títulos, tratores, terras, tantas transações terceirizadas... Todavia, terrivelmente tímida, Teresa torturava-se, temia terminar totalmente traumatizada, transtornada. 
Tio Túlio Telles, tentava tranqüilizá-la: 
-Tranqüiliza-te, tens tanto tempo, Teresa! 
Teresa, tresloucada: 
- Tenho tudo, tio, todavia tô tão triste! Tudo tentei, tantas terapias... Trintona, tio! Tô trintona! Tenho tempo!?! 
- Tens... Temos, tesão... 
Tio Túlio Telles, trêmulo, tocou-lhe, tirou-lhe tudo... 
Túmida, trôpega, tensa, trêmula, Teresa topou tudo. 
Transaram, transaram, transaram... 
Trauma terminado, Teresa teoriza: 
- Tenho tudo: tenho terrenos, tratores, tantas transações terceirizadas, tio Túlio, transas transcendentais, tempo, tempo, tempo...

(Da série inédita Continhos de A a Z)

 

UM CONTO DE NATAL

José Neres

 

Noite Feliz, noite feliz
Hó Senhor, Deus do amor
Pobrezinho nasceu em Belém (x2)
Eis na lapa Jesus, nosso bem
Dorme em paz, ó Jesus
Dorme em paz, ó Jesus

 

         Ele ainda se lembrava do sabor do caríssimo champanhe Francês com que brindaram o último Natal. O ano anterior fora maravilhoso. Farto. Perfeito. Em alguns segundos, ele recordou o ar de felicidade da esposa, quando abriu o embrulho e se deparou com o colar cravejado de brilhantes. Esboçou um breve sorriso ao trazer à memória a cara de susto da filha que, dentro da caixa que continha o desejado celular de última geração, encontrou também um envelope com as passagens para a Europa. O filho do meio estava radiante com a quantidade de jogos eletrônicos que recebera. Nem ligou para as roupas caríssimas que estavam nos outros pacotes... O caçula brincava com os inúmeros brinquedos. Todos estavam felizes naquela noite. Cada filho se isolou em seu quarto, enquanto a esposa compensava com gemidos o presente recebido.

         Mas, meses depois, uma crise desceu sobre a empresa. As dívidas se acumulavam e os credores protestavam por fax, e-mail, telefone e, pior, por intermédio de oficiais de justiça...

         A filha teve de voltar mais cedo da viagem. O celular caríssimo já estava fora de moda e já não tinha um plano ilimitado, mas sim créditos mensais, de preferência com bônus. Os jogos e brinquedos foram deixados de lado. O colar acabou, juntamente com outras jóias recebidas em outras datas festivas, penhorado na Caixa Econômica Federal...

 


Então é Natal, pro enfermo e pro são. 
Pro rico e pro pobre, num só coração. 
Então bom Natal, pro branco e pro negro. 
Amarelo e vermelho, pra paz afinal. 
Então bom Natal, e um ano novo também. 
Que seja feliz quem, souber o que é o bem.
Então é Natal, o que a gente fez? 
O ano termina, e começa outra vez. 
E Então é Natal, a festa Cristã. 
Do velho e do novo, o amor como um todo. 
Então bom Natal, e um ano novo também. 
Que seja feliz quem, souber o que é o bem.

 

         A Voz da cantora Simone inundava o carro. Os presentes deste ano eram bem mais modestos: Um passeio pelo shopping, um lanche em um fast food, uma sessão de cinema e brincadeiras no parquinho eletrônico. Essa a festa possível.

         No banco de trás, a filha, emburrada por não receber um novo celular, olhava a monótona paisagem. Os garotos, como sempre, brigavam. O casal seguia calado. Só a voz da Simone reinava ali.

         Após o lanche, chegou a vez do passeio pelas lojas superlotadas. Pela primeira vez a esposa disse uma frase tão comum aos pobres mortais: “estou só olhando...”

         Não havia mais ingresso para o filme que queriam. O que foi bom, pois sobraria mais dinheiro para os jogos. Depois comprariam um DVD no camelô, era mais barato e mais prático.

         Começaram os joguinhos no parque. A princípio, tudo estava sem graça. Depois, cada ponto se convertia em brilhos no olhar. O brilho evoluiu para abraços e os gritos de vitória envolviam não só a família, como também os demais frequentadores do parquinho. Todos os problemas se esvaneciam diante da cumplicidade de múltiplos olhares.

         Na volta para casa. A Simone vinha muda. Não precisavam mais dela. As conversas animadas preenchiam aquelas cinco vidas.

         Em casa, brindaram com refrigerante e, à meia-noite, trocaram sorrisos e abraços. Os filhos estavam felizes. Nunca esperavam que naquele Natal ganhariam um Pai de presente.

         No quarto, a sós, marido e mulher se despiram das máscaras e, nus, se presentearam com a essência do amor verdadeiro. Nesse Natal, ele aprendeu que gemidos de prazer são bem melhores que gemidos de gratidão.

         O veneno comprado no dia anterior acabava de perder sua utilidade.

 

 

 

DIA DOS PAIS

 

 José Neres

 

 

         A notícia de que era pai veio com a mesma intensidade de um chute nos testículos. Ele jamais havia imaginado que aquela transa meio torta no muro do cemitério teria consequências tão drásticas. E ela nem era tão gostosa assim! Mas acidentes acontecem...

                A criança agora estava com sete anos. O exame de DNA era totalmente dispensável. Bastava olhar o garoto e ver as inúmeras semelhanças. Qualquer foto do pai com a mesma idade poderia ser confundida com a do filho que agora lhe era apresentado. Não tinha como não assumir a paternidade. A mãe da criança não pedia dinheiro, nem casa, nem nada. Apenas o nome dele no registro de nascimento. E uma visita vez ou outra. Era uma espécie de presente dado ao menino que sempre pedia para conhecer o pai.

                O encontro entre os três se deu em um shopping movimentado. Um pai, uma mãe, um filho... nenhuma família. Cumprimentou o garoto com um sorriso amável. O mesmo que ele oferecia a seus clientes na hora de fechar um negócio. Nada mais... Para a mãe, o olhar foi um pouco mais demorado. Ele estava bonita. Ganhou corpo e agora despertava um desejo carnal do qual não se lembrava e ter tido naquela fatídica noite. Aquele decote generoso e as pernas torneadas em nada lembravam aquela criatura esmilinguida que trincava os dentes para não gritar durante o prazer compartilhado naquela noite de São João.

                As diversas redes sociais de que ele participava foram decisivas no acompanhamento da vida do pai da criança. Ela sabia que ele estava noivo. Que o casamento seria dentro de alguns meses. Que a noiva era bonitona, rica e metida a modelo fotográfico... Tudo o que um perfil falso inserido na lista de amizades virtuais poderia mostrar. Ela estava bem informada. Ele ignorava até mesmo o nome dela. O menino levava o primeiro nome dele.

                Uma solução era reconhecer a criança. A noiva deveria entender tudo. Ela sabia que ele nunca fora santo. A outra solução era arrumar um jeito de limpar o próprio passado. Na semana seguinte seria o dia dos pais. Uma excelente oportunidade de pôr seus planos em prática. Tudo limpo. Tudo feito de modo rápido. A criança não tinha culpa do descuido dos dois.

                Uma desculpa qualquer e estava livre para passar parte do domingo dos pais com o filho. Na cabeça, o plano engrenava com maior convicção, não deixando que o pai aproveitasse o lanche, o sorvete, o parquinho. Olhava o menino e via os problemas do futuro. Via os recibos, as notas fiscais, as listas de livros... Não via felicidade. Só problemas.

                Mas o garoto era esperto, conversador, cheio de histórias para contar. Não parava de falar. O pai a nada ouvia, mas o menino se entusiasmava com a inédita figura paterna a seu lado. A felicidade inundava seus olhos. Era hora de voltar. O plano já tomava ares de solução imediata para todos os problemas. Hora e voltar. No carro, o menino insistia em ir no banco de trás. Argumentava com o pai usando os argumentos aprendidos na escola sobre regras de trânsito. Mas a vontade de ver o mundo pelo para-brisa foi mais forte. Para que cinto? Homem que é homem tem que andar livre... O menino sorriu. O pai era um herói que de nada tinha medo.

                Beijou a testa do filho. Duas lágrimas rolaram pela face. Colocou o cinto e segurança em si mesmo. Deu partida no carro e viu a sua frente a reta estrada que lhe traria algumas complicações, mas que o conduziria à liberdade. Um homem tinha que andar sempre livre. Acelerou o carro. Tinha um compromisso inadiável com algum dos postes que beiravam a estrada da vida.

 

 

 

DEVASTAÇÃO

José Neres

 

              Impossível esquecer a primeira vez que vi Flora. Ela estava à beira do rio. Solitária. Vestida com muitos grilos e raríssimas borboletas. Sobre seu sexo, repousava um buquê de espinhadas e secas rosas, ladeadas por ramos de sensitivas e camomila. Silenciosa, ela mastigava mecanicamente um restinho de sonho. Suas mãos eram galhos ressequidos, mas suas unhas tinham ainda a maciez de perfumadas pétalas. Os grilos cobriam seu corpo. Deixavam pouco espaço para as multicoloridas borboletas.

                Aproximei-me devagar. Com olhar experiente, vi que aquele terreno ainda era fértil. Ela murchava a cada tentativa de toque. Pacientemente, espantei um a um os grilos. As borboletas encontram o caminho de volta, cobrindo o corpo de cores e alegrias. Cautelosamente, afastei os ramos de sensitivas e os de camomila. Livrei-a das ressequidas rosas e vi que um jardim se escondia por trás dos espinhos. Um jardim. Uma fonte de néctar com aroma de jasmim, sândalo e alecrim ao mesmo tempo. Provei o mel que emanava daquela fonte. As mãos ganharam viço de verdejantes folhas e as unhas atingiram consistência suficiente para arranhar minhas costas enquanto eu depositava nela a semente guardada para aquele momento.

                A cada encontro, Flora se renovava, alimentava-se de sonhos novos e o sorriso voltava a sua face. As borboletas esvoaçam pelo seu corpo, deixando entrever, em breves relances, suas perfeitas formas. O vento levava seu perfume para toda a região.

                Saciado, depois de tanto me afogar na seiva que ela abundantemente me oferecia, fiz o que sempre fora meu costume: procurei outros campos.

                Quem chegou depois de mim jura que ali nunca houve flores, nunca houve perfume, que ela jamais sorriu e que jamais uma borboleta pousou sobre aquele ressequido corpo. Pois os que tentaram espantar os grilos que a cobriam só encontraram um tronco coberto de percevejos e, cobrindo o ventre, sedosas folhas de urtiga.

(Conto publicado em 15 contos +, organização de Helena Frenzel)